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Guerra Junqueiro
Fome no Ceará
I Lançai o olhar em torno; Arde a terra abrasada Debaixo da candente abóbada dum forno. Já não chora sobre ela orvalho a madrugada; Secaram-se de todo as lágrimas das fontes; E na fulva aridez aspérrima dos montes, Entre as cintilações narcóticas da luz, As árvores antigas Levantam para o ar – atléticas mendigas, Fantasmas espectrais, os grandes braços nus.
Na deserta amplidão dos campos luminosos Mugem sinistramente os grandes bois sequiosos. As aves caem já, sem se suster nas asas. E, exaurindo-lhe a força enorme que ela encerra, O Sol aplica à Terra Um cáustico de brasas.
O incêndio destruidor a galopar com fúria, Como um Átila, arrasta a túnica purpúrea Nos bosques seculares; E, Lacoontes senis, os troncos viridentes Torcem-se, crepitando entre as rubras serpentes Com as caudas de fogo em convulsões nos ares.
O Sol bebeu dum trago as límpidas correntes; E os seus leitos sem água e sem ervagens frescas, Coas bordas solitárias, Têm o aspecto cruel de valas gigantescas Onde podem caber muitos milhões de párias. E entre todo este horror existe um povo exangue, Filho do nosso sangue, Um povo nosso irmão, Que nas nsias da fome, em contorções hediondas, Nos estende através das súplicas das ondas Com o último grito a descarnada mão.
E por sobre esta imensa, atroz calamidade, Sobre a fome, o extermínio, a viuvez, a orfandade, Sobre os filhos sem mãe e os berços sem amor, Pairam sinistramente em bandos agoireiros Os abutres, que são as covas e os coveiros Dos que nem terra têm para dormir, Senhor!
E sabei – monstruoso, horrível pesadelo! – Sabei que aí – meu Deus, confranjo-me ao dizê-lo! – Vêem-se os mortos nus lambidos pelos cães, E os abutres cruéis com as garras de lanças, Rasgando, devorando os corpos das crianças Nas entranhas das mães!
II Quando inda há pouco o vendaval batia Dos grandes montes nos robustos flancos; E as nuvens, como enormes ursos brancos, Em tropel pela abóbada sombria Dos canhões dos titãs, aos solavancos, Arrastavam a rouca artilharia;
Quando os rios, indômitos, escuros, Iam como ladrões saltando os muros, Para roubar ao camponês o pão; E, cruzando-se, os raios flamejantes Abriam como esplêndidas montanhas De meio a meio a funda escuridão; Quando os ventos aspérrimos, frenéticos Como ciclopes doidos, epilépticos, Com raivas convulsivas Perseguiam, bramindo, às chicotadas, Das retumbantes ondas explosivas As trôpegas manadas;
Quando entre os gritos roucos da procela, A fome – a loba – escancarava a goela Uivando às nossas portas; E andavam sobre as águas desumanas Com os despojos tristes das choupanas Berços vazios de crianças mortas;
Oh! nesse instante, ao ver o povo exnime, Pulsou da pátria o coração unnime, Um coração de mãe piedosa e boa... E das imensas lágrimas choradas Muitíssimas então foram guardadas Entre as jóias da croa. Mas é certo também que além dos mares Alguém ouviu, alguém, cortando os ares Essa terrível dor; E esse alguém é quem hoje, é quem agora Morto de fome a soluçar implora Mais do que o nosso auxílio – o nosso amor. Vamos! Abri os corações, abri-os! Transborde a caridade como os rios Transbordaram dos leitos em Janeiro! Nem pode haver decerto mão avara, Que a esmola negue a quem lha deu primeiro.
A miséria é um horrível sorvedoiro; Vamos! enchei-o com punhados doiro, Mostrando assim aos olhos das nações Que é impossível já hoje (isto consola) Morrer de fome alguém, pedindo esmola Na mesma língua em que a pediu Camões!
Nota - Poema extraído do livro A Musa em Férias, da 2ª edição de OBRAS de Guerra Junqueiro (Poesia), Organização e introdução de Amorim de Carvalho. Porto: Lello & Irmãos - Editores, 1974, pp. 744-747. Este poema é de 1877, justamente quando se inicia a terrível seca de 1877-1879 no Nordeste e que no Ceará foi até o ano de 1880. Afirma Rodolpho Theophilo, que a estudou demoradamente, que o obituário de Fortaleza no período elevou-se a 65.163 pessoas. Fortaleza possuía então por volta de 20 mil almas, que foram acrescidas subitamente de cerca de 110 mil migrantes da seca. Herbert Smith, jornalista inglês que percorria o Brasil àquela época, foi testemunha ocular dessa seca e afirma com algum exagero que “durante 1877 e 1878, a mortandade no Ceará foi provavelmente perto de 500 mil, ou mais da metade da população”. [Brazil: The Amazons and Coast. New York: Charles Scriber’s Sons, 1879, p. 416]. No poema, Guerra Junqueiro faz alusão à célebre frase que Dom Pedro II teria pronunciado acerca das jóias de sua coroa... ( Fortaleza, 1º de Janeiro de 1998, Eduardo Diatahy B. de Menezes)
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O MELRO
O melro, eu conheci-o: Era negro, vibrante, luzidio, Madrugador, jovial; Logo de manhã cedo Começava a soltar, dentre o arvoredo, Verdadeiras risadas de cristal. E assim que o padre-cura abria a porta Que dá para o passal, Repicando umas finas ironias, O melro, dentre a horta, Dizia-lhe: “Bons dias!” E o velho padre-cura Não gostava daquelas cortesias.
O cura era um velhote conservado, Malicioso, alegre, prazenteiro; Não tinha pombas brancas no telhado, Nem rosas no canteiro: Andava às lebres, pelo monte, a pé, Livre de reumatismos, Graças a Deus, e graças a Noé. O melro desprezava os exorcismos Que o padre lhe dizia: Cantava, assobiava alegremente; Até que ultimamente O velho disse um dia:
“Nada, já não tem jeito!, este ladrão Dá cabo dos trigais! Qual seria a razão Por que Deus fez os melros e os pardais?!” E o melro entretanto, Honesto como um santo, Mal vinha no oriente A madrugada clara, Já ele andava jovial, inquieto, Comendo alegremente, honradamente, Todos os parasitas da seara Desde a formiga ao mais pequeno insecto. E apesar disto, o rude proletário, O bom trabalhador, Nunca exigiu aumento de salário.
Que grande tolo o padre confessor!
Foi para a eira o trigo; E, armando uns espantalhos, Disse o abade consigo: “Acabaram-se as penas e os trabalhos.” Mas logo de manhã, maldito espanto! O abade, inda na cama, Ouvindo do melro o costumado canto, Ficou ardendo em chama; Pega na caçadeira, Levanta-se dum salto, E vê o melro, a assobiar, na eira, Em cima do seu velho chapéu alto!
Chegou a coisa a termo Que o bom do padre-cura andava enfermo; Não falava nem ria, Minado por tão íntimo desgosto; E o vermelho oleoso do seu rosto Tornava-se amarelo dia a dia. E foi tal a paixão, a desventura (Muito embora o leitor não me acredite), Que o bom do padre-cura Perdera… o apetite!
*
Andando no quintal, um certo dia, Lendo em voz alta o Velho Testamento, Enxergou por acaso (que alegria!, Que ditoso momento!) Um ninho com seis melros, escondido Entre uma carvalheira.
E ao vê-los exclamou enfurecido:
“A mãe comeu o fruto proibido; Esse fruto era a minha sementeira: Era o pão, e era o milho; Transmitiu-se o pecado. E, se a mãe não pagou, que pague o filho. É doutrina da Igreja. Estou vingado!”
E, engaiolando os pobres passaritos, Soltava exclamações: “É uma praga. Malditos! Dão-me cabo de tudo esses ladrões! Raios os partam! Andai lá que enfim…”
E deixando a gaiola pendurada, Continuou a ler o seu lati
Fungando uma pitada.
*
Vinha tombando a noite silenciosa; E caía por sobre a natureza Uma serena paz religiosa, Uma bela tristeza Harmónica, viril, indefinida. A luz crepuscular Infiltra-nos na alma dolorida Um misticismo heróico e salutar. As árvores, de luz inda douradas, Sobre os montes longínquos, solitários, Tinham tomado as formas rendilhadas Das plantas dos herbários. Recolhiam-se a casa os lavradores. Dormiam virginais as coisas mansas: Os rebanhos e as flores As aves e as crianças.
Ia subindo a escada o velho abade; A sua negra, atlética figura, Destacava na frouxa claridade, Como uma nódoa escura. E, introduzindo a chave no portal, Murmurou entre dentes:
“Tal e qual… tal e qual!... Guisados com arroz são excelentes.”
Nasceu a lua. As folhas dos arbustos Tinham o brilho meigo, aveludado, Do sorriso dos mártires, dos justos. Um eflúvio dormente e perfumado Embebedava as seivas luxuriantes. Todas as forças vivas da matéria Murmuravam diálogos gigantes Pela amplidão etérea. São precisos silêncios virginais, Disposições simpáticas, nervosas, Para ouvir estas falas silenciosas Dos mundos vegetais. As orvalhadas, frescas espessuras, Pressentiam-se quase a germinar. Desmaiavam-se as cndidas verduras Nos magnetismos brancos do luar. (…)
*
E nisto o melro foi direito ao ninho. Para o agasalhar, andou buscando Umas penugens doces como arminho, Um feltrozito acetinado e brando. Chegou lá e viu tudo. Partiu como uma frecha; e, louco e mudo, Correu por todo o matagal; em vão! Mas eis que solta de repente um grito Indo encontrar os filhos na prisão.
“Quem vos meteu aqui?!” O mais velho, Todo tremente murmurou então: “Foi aquele homem negro. Quando veio, Chamei, chamei… Andavas tu na horta… Ai que susto, que susto!, ele é tão feio!... Tive-lhe tanto medo!... Abre esta porta E esconde-nos debaixo da tua asa! Olha, já vão florindo as açucenas; Vamos a construir a nossa casa Num bonito lugar… Ai!, quem me dera, minha mãe, ter penas Para voar, voar!”
E o melro alucinado Clamou: “Senhor! Senhor! É porventura crime ou é pecado Que eu tenha muito amor A estes inocentes? Ó natureza, ó Deus, como consentes Que me roubem assim os meus filhinhos, Os filhos que eu criei! Quanta dor, quanto amor, quantos carinhos, Quanta noite perdida Nem eu sei… E tudo, tudo em vão! Filhos da minha vida Filhos do coração!!! Não bastaria a natureza inteira, Não bastaria o Céu para voardes, E prendem-vos assim desta maneira!... Covardes! A luz, a luz, o movimento insano, Eis o aguilhão, a fé que nos abrasa… Encarcerar a asa É encarcerar o pensamento humano. A culpa tive-a eu! Quase à noitinha Parti, deixei-os sós… A culpa tive-a eu, a culpa é minha, De mais ninguém!... Que atroz! E eu devia sabê-lo! Eu tinha obrigação de adivinhar… Remorso eterno! Eterno pesadelo!...
(…)
Falta-me a luz e o ar!... Oh, quem me dera Ser abutre ou ser fera Para partir o cárcere maldito!... E como a noite é límpida e formosa! Nem um ai, nem um grito… Que noite triste!, oh, noite silenciosa!...”
*
E a natureza fresca, omnipotente, Sorria castamente Com o sorriso alegre dos heróis. Nas sebes orvalhadas, Entre folhas luzentes como espadas, Cantavam rouxinóis.
Os vegetais felizes Mergulhavam as sôfregas raízes A procurar na terra as seivas boas, Com a avidez e as raivas tenebrosas Das pequeninas feras vigorosas Sugando à noite os peitos das leoas. A Lua triste, a Lua merencória, Desdémona marmórea, Rolava pelo azul da imensidade, Imersa numa luz serena e fria, Branca como a harmonia, Pura como a verdade. E entre a luz do luar e os sons e as flores, Na atonia cruel das grandes dores, O melro solitário Jazia inerte, exnime, sereno, Bem como outrora a mãe do Nazareno Na noite do Calvário!...
Segundo o seu costume habitual, Logo de madrugada O padre-cura foi para o quintal, Levando a Bíblia e sobraçando a enxada. Antes de dizer missa, O velho abade inevitavelmente Tratava da hortaliça E rezava a Deus-Padre Omnipotente Vários trechos latinos, Salvando desta forma, juntamente, As ervilhas, as almas e os pepinos.
E já de longe ia bradando:
“Olé! Dormiram bem?... Estimo… Eu lhes darei o mimo, Canalha vil, grandíssima ralé! Então vocês, seus almas do Diabo, Julgam que isto que era só dar cabo Da horta e do pomar, E o bico alegre e estômago contente, E o camelo do cura que se aguente, Que engrole o seu latim e vá bugiar!... Grandes larápios! Era o que faltava Vocês irem ao milho, E a mim mandar-me à fava! Pois muito bem, agora que vos pilho Eu vos ensinarei, meus safardanas! Vocês são mariolões, são ratazanas, Têm bico, é certo, mas não têm tonsura… E, nas manhas, um melro nunca chega às manhas naturais dum padre-cura. O melhor vinho que encontrar na adega É para hoje, olé!... Que bambochata! Que petisqueira! Melros com chouriço!... E então a Fortunata Que tem um dedo e um jeito para isso!... Hei-de comer-vos todos um a um, Lambendo os beiços, com tal gana enfim, Que comendo-vos todos, mesmo assim Eu fico ainda quase que em jejum! E depois de vos ter dentro da pança, Depois de vos jantar, Vocês verão como o velhote dança, Como ele é melro e sabe assobiar!...”
Mas nisto o padre-cura, titubeante, Quase desfalecendo, Atónito de horror parou diante Deste drama estupendo:
O melro, ao ver aproximar o abade, Despertou da atonia, Lançando-se furioso contra a grade Do cárcere. Torcia, Para os partir os ferros da prisão, Crispando as unhas convulsivamente Com a fúria dum leão. Batalha inútil, desespero ardente! Quebrou as garras, depenou as asas E alucinado, exangue, Os olhos como brasas, Herói febril, a gotejar em sangue, Partiu num voo arrebatado e louco, Trazendo, dentro em pouco, Preso do bico, um ramo de veneno. E belo e grande e trágico e sereno, Disse:
“Meus filhos, a existência é boa Só quando é livre. A liberdade é a lei, Prende-se a asa, mas a alma voa… Ó filhos, voemos pelo azul!... Comei!”
E mais sublime do que Cristo, quando Morreu na Cruz, maior do que Catão, Matou os quatro filhos, trespassando Quatro vezes o próprio coração! Soltou, fitando o abade, uma pungente Gargalhada de lágrima, de dor, E partiu pelo espaço heroicamente, Indo cair, já morto, de repente Num carcavão com silveiras em flor.
E o velho abade, lívido d’espanto, Exclamou afinal: “Tudo que existe é imaculado e é santo! Há em toda a miséria o mesmo pranto E em todo o coração há um grito igual. Deus semeou d’almas o universo todo. Tudo o que vive ri e canta e chora… Tudo foi feito com o mesmo lodo, Purificado com a mesma aurora. Ó mistério sagrado da existência, Só hoje te adivinho, Ao ver que a alma tem a mesma essência, Pela dor, pelo amor, pela inocência, Quer guarde um berço, quer proteja um ninho! Só hoje sei que em toda a criatura, Desde a mais bela até à mais impura, Ou numa pomba ou numa fera brava, Deus habita, Deus sonha, Deus murmura!...
(…)
Ah, Deus é bem maior do que eu julgava…”
E quedou silencioso. O velho mundo, Das suas crenças antigas, num momento, Viu-o sumir exausto, moribundo, Nos abismos sem fundo Do temeroso mar do Pensamento.
E chorou e chorou… A Igreja, a Crença, Rude montanha, pavorosa, escura, Que enchia o globo com a sombra imensa Dos seus setenta séculos d’altura; O Himalaia de dogmas triunfantes, Mais eternos que o bronze e que o granito, Onde aos profetas Deus falava dantes, Entre raios e nuvens trovejantes, Lá dos confins sidérios do infinito; Esse colosso enorme, em dois instantes Viu-o tremer, fender-se e desabar Numa ruína espantosa, Só de tocar-lhe a asa vaporosa Duma avezinha trémula, a expirar!...
(…)
E, arremessando a Bíblia, o velho abade Murmurou: “Há mais fé e há mais verdade, Há mais Deus com certeza Nos cardos secos dum rochedo nu Que nessa Bíblia antiga… Ó Natureza, A única Bíblia verdadeira és tu!...”
GUERRA JUNQUEIRO
Nota:
O facto em que se baseia este poemeto, conquanto pouco conhecido, é absolutamente verdadeiro.
Os melros e algumas outras aves, como os pintassilgos e os rouxinóis, quando lhes encarceram os filhos, envenenam-nos. Muitas vezes (sarcasmo trágico, crueldade sublime!), deixando-os vivos, arrancam-lhes a língua!
Ora nem todos os melros, pintassilgos e rouxinóis assassinam os filhos, quando lhos prendem. Só o fazem os mais extraordinários, os mais heróicos. O que nos demonstra que a acção é livre e responsável, e não um simples produto duma fatalidade orgnica.
É pena que Michelet ignorasse esse facto. Que páginas divinas que ele teria escrito! L’Oiseau ficou incompleto.
(Do livro A VELHICE DO PADRE ETERNO, de GUERRA JUNQUEIRO- Livros de Bolso Europa-América) | | | | | | | | |
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FIEL
Na luz do seu olhar tão lnguido, tão doce, Havia o que quer que fosse Dum íntimo desgosto : Era um cão ordinário, um pobre cão vadio Que não tinha coleira e não pagava imposto.
Acostumado ao vento e acostumado ao frio, Percorria de noite os bairros da miséria à busca dum jantar. E ao ver surgir da lua a palidez etérea, O velho cão uivava uma canção funérea, Triste como a tristeza ossinica do mar.
Quando a chuva era grande e o frio inclemente, Ele ia-se abrigar às vezes nos portais ; E mandando-o partir, partia humildemente, Com a resignação nos olhos virginais. Era tranquilo e bom como as pombinhas mansas ; Nunca ladrou dum pobre à capa esfarrapada : E, como não mordia as tímidas crianças,
As crianças então corriam-no a pedrada. Uma vez casualmente, um mísero pintor Um boémio, um sonhador, Encontrara na rua o solitário cão ; O artista era uma alma heróica e desgraçada, Vivendo numa escura e pobre água furtada, Onde sobrava o génio e onde faltava o pão.
Era desses que têm o rubro amor da glória, O grande amor fatal, Que umas vezes conduz às pompas da vitória, E que outras vezes leva ao quarto do hospital. E ao ver por sobre o lodo o magro cão plebeu, Disse-lhe : - "O teu destino é quase igual ao meu : Eu sou como tu és, um proletário roto, Sem família, sem mãe, sem casa, sem abrigo ; E quem sabe se em ti, ó velho cão de esgoto, Eu não irei achar o meu primeiro amigo !..."
No céu azul brilhava a lua etérea e calma ; E do rafeiro [1] vil no misterioso olhar Via-se o desespero e nsia duma alma, Que está encarcerada, e sem poder falar. O artista soube ler naquele olhar em brasa A eloquente mudez dum grande coração ; E disse-lhe : - "Fiel, partamos para casa : Tu és o meu amigo, e eu sou o teu irmão. -" E viveram depois assim por longos anos,
Companheiros leais, heróicos puritanos, Dividindo igualmente as privações e as dores. Quando o artista infeliz, exausto e miserável, Sentia esmorecer o génio inquebrantável Dos fortes lutadores ; Quando até lhe acudiu às vezes a lembrança Partir com uma bala a derradeira esprança, Pôr um ponto final no seu destino atroz ; Nesse instante do cão os olhos bons, serenos, Murmura-lhe: - Eu sofro, e a gente sofre menos, Quando se vê sofrer também alguém por nós.
Mas um dia a Fortuna, a deusa milionária, Entrou-lhe pelo quarto, e disse alegremente: "Um génio como tu, vivendo como um pária, Agrilhoado da fome à lúgubre corrente! Eu devia fazer-te há muito esta surpresa, Eu devia ter vindo aqui pra te buscar; Mas moravas tão alto ! E digo-o com franqueza Custava-me subir até ao sexto andar.
Acompanha-me; a glória há de ajoelhar-te aos pés !..." E foi ; e ao outro dia as bocas das Frinés Abriram para ele um riso encantador; A glória deslumbrante iluminou-lhe a vida Como bela alvorada esplêndida, nascida A toques de clarim e a rufos de tambor !
Era feliz. O cão Dormia na alcatifa à borda do seu leito, E logo de manhã vinha beijar-lhe a mão, Ganindo com um ar alegre e satisfeito. Mas ai! O dono ingrato, o ingrato companheiro, Mergulhado em paixões, em gozos, em delícias, Já pouco tolerava as festivas carícias Do seu leal rafeiro.
Passou-se mais um tempo; o cão, o desgraçado, Já velho e no abandono, Muitas vezes se viu batido e castigado Pela simples razão de acompanhar seu dono. Como andava nojento e lhe caíra o pelo, Por fim o dono até sentia nojo ao vê-lo, E mandava fechar-lhe a porta do salão.
Meteram-no depois num frio quarto escuro, E davam-lhe a jantar um osso branco e duro, Cuja carne servira aos dentes doutro cão. E ele era como um roto, ignóbil assassino, Condenado à enxovia, aos ferros, às galés : Se se punha a ganir, chorando o seu destino, Os criados brutais davam-lhe pontapés.
Corroera-lhe o corpo a negra lepra infame. Quando exibia ao sol as podridões obscenas, Poisava-lhe no dorso o causticante enxame Das moscas das gangrenas. Até que um dia, enfim, sentindo-se morrer, Disse "Não morrerei ainda sem o ver; A seu pés quero dar o último suspiro
Meteu-se-lhe no quarto, assim como um bandido. E o artista ao entrar viu o rafeiro imundo, E bradou com violência: "Ainda por aqui o sórdido animal! É preciso acabar com tanta impertinência, Que esta besta está podre, e vai cheirando mal !" E, pousando-lhe a mão cariciosamente, Disse-lhe com um ar de muito bom amigo :
"Ó meu pobre Fiel, tão velho e tão doente, Ainda que te custe anda daí comigo."
E partiram os dois. Tudo estava deserto. A noite era sombria; o cais ficava perto ; E o velho condenado, o pobre lazarento, Cheio de imensas mágoas
Sentiu junto de si um pressentimento O fundo soluçar monótono das águas. Compreendeu enfim ! Tinha chegado à beira Da corrente. E o pintor, Agarrando uma pedra atou-lha na coleira, Friamente cantando uma canção damor.
E o rafeiro sublime, impassível, sereno, Lançava o grande olhar às negras trevas mudas Com aquela amargura ideal do Nazareno Recebendo na face o ósculo de Judas. Dizia para si: "è o mesmo, pouco importa. Cumprir o seu desejo é esse o meu dever: Foi ele que me abriu um dia a sua porta: Morrerei, se lhe dou com isso algum prazer."
Depois, subitamente O artista arremessou o cão na água fria. E ao dar-lhe o pontapé caiu-lhe na corrente O gorro que trazia Era uma saudosa, adorada lembrança Outrora concedida Pela mais caprichosa e mais gentil criança, Que amara, como se ama uma só vez na vida.
E ao recolher à casa ele exclamava irado: "E por causa do cão perdi o meu tesouro! Andava bem melhor se o tinha envenenado! Maldito seja o cão! Dava montanhas doiro, Dava a riqueza, a glória, a existência, o futuro, Para tornar a ver o precioso objecto, Doce recordação daquele amor tão puro."
E deitou-se nervoso, alucinado, inquieto. Não podia dormir. Até nascer da manhã o vivido clarão, Sentiu bater à porta! Ergueu-se e foi abrir. Recuou cheio de espanto: era o Fiel, o cão, Que voltava arquejante, exnime, encharcado, A tremer e a uivar no último estertor, Caindo-lhe da boca, ao tombar fulminado, O gorro do pintor!
Guerra Junqueiro | | | | | | | |
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A Lágrima Manhã de Junho ardente. Uma encosta escavada, Sêca, deserta e nua, à beira duma estrada.
Terra ingrata, onde a urze a custo desabrocha, Bebendo o sol, comendo o pó, mordendo a rocha.
Sôbre uma folha hostil duma figueira brava, Mendiga que se nutre a pedregulho e lava,
A aurora desprendeu, compassiva e divina, Uma lágrima etérea, enorme e cristalina.
Lágrima tão ideal, tão límpida, que ao vê-la, De perto era um diamante e de longe uma estrêla.
Passa um rei com o seu cortejo de espavento, Elmos, lanças, clarins, trinta pendões ao vento.
- "No meu diadema, disse o rei, quedando a olhar, Há safiras sem conta e brilhantes sem par,
"Há rubis orientais, sangrentos e doirados, Como beijos damor, a arder, cristalizados.
"Há pérolas que são gotas de mágoa imensa, Que a lua chora e verte, e o mar gela e condensa.
"Pois, brilhantes, rubis e pérolas de Ofir, Tudo isso eu dou, e vem, ó lágrima, fulgir
"Nesta croa orgulhosa, olímpica, suprema, Vendo o Globo a teus pés do alto do teu diadema!"
E a lágrima celeste, ingénua e luminosa, Ouviu, sorriu, tremeu, e quedou silenciosa.
*** Couraçado de ferro, épico e deslumbrante, Passa no seu ginete um cavaleiro andante.
E o cavaleiro diz à lágrima irisada: "Vem brilhar, por Jesus, na cruz da minha espada!
"Far te hei relampejar, de vitória em vitória, Na Terra Santa, à luz da Fé, ao sol da Glória!
"E à volta há-de guardar-te a minha noiva, ó astro, Em seu colo auroreal de rosa e de alabastro.
"E assim alumiarás com teu vivo esplendor Mil combates de heróis e mil sonhos damor!"
E a lágrima celeste, ingénua e luminosa, Ouviu, sorriu, tremeu e quedou silenciosa.
*** Montado numa mula escura, de caminho, Passa um velho judeu, avarento e mesquinho.
Mulas de carga atrás levavam-lhe o tesoiro: Grandes arcas de cedro, abarrotadas doiro.
E o velhinho andrajoso e magro como um junco, O crnio calvo, o olhar febril, o bico adunco,
Vendo a estrêla, exclamou: "Oh Deus, que maravilha! Como ela resplandece, e tremeluz, e brilha!
"Com meu oiro em montão podiam-se comprar Os impérios dos reis e os navios do mar,
"E por esse diamante esplêndido trocara Todo o meu oiro imenso a minha mão avara!"
E a lágrima celeste, ingénua e luminosa, Ouviu, sorriu, tremeu, e quedou silenciosa.
*** Debaixo da figueira, então, um cardo agreste, Já ressequido, disse à lágrima celeste:
"A terra onde o lilás e a balsa mina medra Para mim teve sempre um coração de pedra.
"Se a queixar-me, ergo ao céu os braços por acaso, O céu manda-me em paga o fogo em que me abraso.
"Nunca junto de mim, ulcerado de espinhos, Ouvi trinar, gorjear a música dos ninhos.
"Nunca junto de mim ranchos de namoradas Debandaram, cantando, em noites estreladas...
"Voa a ave no azul e passa longe o amor, Porque ai! Nunca dei sombra e nunca tive flor!...
"Ó lágrima de Deus, ó astro, ó gota dágua, Cai na desolação desta infinita mágoa!"
E a lágrima celeste, ingénua e luminosa, Tremeu, tremeu, tremeu... e caiu silenciosa!...
*** E algum tempo depois o triste cardo exangue, Reverdejando, dava uma flor cor de sangue,
Dum roxo macerado, e dorido, e desfeito, Como as chagas que tem Nosso Senhor no peito...
E ao cálix virginal da pobre flor vermelha Ia buscar, zumbindo, o mel doirado a abelha!...
Guerra Junqueiro
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Préstito fúnebre
Que alegrias virgens, campesinas, fremem Neste imaculado, límpido arrebol! Como os galos cantam!... como as noras gemem!... Nos olmeiros brancos, cujas folhas tremem, Refulgente e novo passarinha o sol!...
Pela estrada, que entre cerejais ondeia, Uma pequerrucha, – tró-la-ró-la-rá – Vai cantando e guiando o carro para a aldeia... São os bois enormes, e a carrada cheia Com um castanheiro apodrecido já.
Oh, que donairosa, linda boieirinha! Grandes olhos garços, sorrisinho arisco... D’aguilhada em punho lépida caminha, Com a graça aérea d’ave ribeirinha, Verdilhão, arvéola, toutinegra ou pisco.
Loira, mas do loiro fulvo das abelhas; Fresca como os cravos pelo amanhecer; Brincos de cerejas presos nas orelhas, Na boquita rósea três canções vermelhas, Na aguilhada, ao alto, uma estrelinha a arder!
Descalcinha e pobre, mas sem ar mendigo, Nada mais esbelto, mais encantador! Veste-a d’oiro a glória do bom sol amigo... O chapéu é palha que inda há um mês deu trigo, A saíta é linho inda há bem pouco em flor!...
E os dois bois enormes, colossais, fleumáticos, Na aleluia imensa, triunfal, da aurora, Vão como bondosos monstros enigmáticos, Almas por ventura d’ermitões extáticos, Ruminando bíblias pelos campos fora!...
Ao arado e ao carro presos noite e dia, Como dois grilhetas, quer de Inverno ou V’rão! E, submissos, uma pequerrucha os guia! E nos sulcos que abrem canta a cotovia, As boninas riem-se e amadura o pão!...
Levam as serenas frontes majestosas Enramalhetadas como dois altares Madressilvas, loiros, pmpanos, mimosas, Abelhões ardentes desflorando rosas, Borboletas claras em noivado, aos pares...
E eis no carro morto o castanheiro, enquanto Melros assobiam nos trigais além... Heras amortalham-no em seu verde manto... Deu-lhe a terra o leite, dá-lhe a aurora o pranto... Que feliz cadáver, que até cheira bem!...
Musgos, liquens, fetos – química incessante! – Fazem montões d’almas dessa podridão... Já nesse esqueleto seco de gigante, Sob a luz vermelha, num festim radiante, Mil milhões de vidas pululando estão!...
Sempre à fortaleza casa-se a doçura Como o leão da Bíblia morto num vergel, Do seu tronco ainda na caverna escura Um enxame d’oiro rútilo murmura, Construindo um favo cndido de mel!...
Oh, os bois enormes, mansos como arminhos, Meditando estranhas, incubas visões!... Pousam-lhes nas hastes, vede, os passarinhos, E por sobre os longos, tórridos caminhos Dos seus olhos caem bênçãos e perdões...
Chorarão o velho castanheiro ingente, Sob o qual dormiram sestas estivais? Almas do arvoredo, o seu olhar plangente Saberá acaso misteriosamente Traduzir as línguas em que vós falais?!...
Castanheiro morto! que é da vida estranha Que no ovário exíguo duma flor nasceu, E criou raízes, e se fez tamanha, Que trezentos anos sobre uma montanha Seus trezentos braços de colosso ergueu?!...
Onde a alma, origem dessas formas belas? Em tão várias formas que sonhou dizer? Qual a ideia, ó alma, convertida nelas? E desfeito o encanto, que nos não revelas, Que aparências novas tomará teu ser?...
Noite escura!... enigmas!... Ai, do que eu preciso, Boieirinha linda, linda d’encantar, É dessa inocência, desse paraíso, Da alegria d’oiro que há no teu sorriso, Da candura d’alva que há no teu olhar!...
Grandes bois que adoro, p’ra fortuna minha, Quem me dera a vossa mansidão cristã! Arrotear os campos, fecundar a vinha, E nos olhos garços duma boieirinha, Ter duas estrelas virgens da manhã!...
E também quisera, mortos castanheiros, Como vós erguer-me para o Sol a flux, Dar trezentos anos sombra aos pegureiros, E num lar de choça, em festivais braseiros, A aquecer velhinhos, desfazer-me em luz!...
Guerra Junqueiro
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O DOIDO, NA ESCURIDãO
Guerra Junqueiro
Ao dar a meia-noite, com fúria insensata, Na torre da igreja dobra o carrilhão; Martelam nos sinos badalos de prata, De imunda, de horrível configuração!...
Milheiros de luzes, brandões macerados Tremulam no templo...Que imenso clarão! Faíscam diamantes, lampejam brocados, Incenso da Arábia voa em turbilhão!
Os santos e santas, alfaias e altares, é tudo oiro virgem, que cintilação! Crepitam fogos de gemas solares, Topázios da Pérsia, rubis do Industão.
Debaixo dum pálio de Ihama purpúrea Levanta-se um leito rútilo e pagão: O leito do bode, Senhor da luxúria, Com mais pedrarias que o de Salomão.
Já o órgão reboa, frementes e nuas, As onze mil monjas vêm em procissão... Os olhos em chama, traseiros de luas, Rezando palavras de abominação!...
Mitra coruscando, sedas fulgurosas, A cruz dobre o peito, báculo na mão, Conduz a teoria das monjas ansiosas Um bispo castrado, que é seu guardião.
O bode rebrame no leito de pluma... Acercam-se as freiras...e o bispo capão Entrega-as ao bode, dá-lhas uma a uma, Com ar de respeito, com veneração...
São onze mil noivas, são onze mil bodas... Formidavelmente gira o carrilhão... E o monstro lascivo padreia-as a todas, Num delirium tremens de fornicação!
Depois de execrando, bruto cavadoiro, O bode, desfeito de devassidão, Toma um semicúpio numa concha de oiro, Em água benzida pelo capelão.
E, sinos calados, extintas as luzes, Entregues as freiras ao seu guardião, Persigna-se o bode, fazendo três cruzes, E em paz adormece como um bom cristão.
E ao cabo duns meses, final de tais contos, As monjas nas celas, com toda a razão, Parem arcebispos, mitrados e prontos, Exemplo mui alto de grã devoção!.. | | | | | | | | | | | |
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ORAçãO AO PãO
Guerra Junqueiro
Com quantos grãos de trigo um pão se fez? Dez mil talvez?
Dez mil almas, dez mil calvários e agonias, Todos os dias,
Para insuflar atentos n´alma impura Duma só criatura!
Homem, levanta a Deus o coração, Ao ver o pão.
Ei-lo em cima da mesa do teu lar; Olha a mesa: um altar!
Ei-lo, o vigor dos braços teus, O pão de Deus!
Ei-lo, o sangue e a alegria, Que teu peito robora e teu crnio alumia!
Ei-lo a fraternidade, Ei-lo, a piedade, Ei-lo, a humildade,
Ei-lo a concórdia, a bem-aventurança, A paz em Deus, tranqüila e mansa!
Comer é comungar. Ajoelha, orando, Em frente desse pão, ou duro ou brando.
Antes que o mordas, tigre carniceiro, Ergue-o a luz, beija-o primeiro!
Depois devora! O pão é corpo e alma Em corpo e alma O comerás, Tigre voraz.
São dez mil almas brancas, cor de Lua, Transmigrando divinas para a tua!
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REGRESSO AO LAR
Ai, há quantos anos que eu parti chorando Deste meu saudoso, carinhoso lar!... Foi há vinte?...há trinta? Nem eu sei já quando!... Minha velha ama, que me estás fitando, Canta-me cantigas para eu me lembrar!...
Dei a volta ao mundo, dei a volta à Vida... Só achei enganos, decepções, pesar... Oh! a ingénua alma tão desiludida!... Minha velha ama, com a voz dorida, Canta-me cantigas de me adormentar!...
Trago damargura o coração desfeito... Vê que fundas mágoas no embaciado olhar! Nunca eu saíra do meu ninho estreito!... Minha velha ama que me deste o peito, Canta-me cantigas para me embalar!...
Pôs-me Deus outrora no frouxel do ninho Pedrarias dastros, gemas de luar... Tudo me roubaram, vê, pelo caminho!... Minha velha ama, sou um pobrezinho... Canta-me cantigas de fazer chorar!
Como antigamente, no regaço amado, (Venho morto, morto!...) deixa-me deitar! Ai, o teu menino como está mudado! Minha velha ama, como está mudado! Canta-lhe cantigas de dormir, sonhar!...
Canta-me cantigas, manso, muito manso... Tristes, muito tristes, como à noite o mar... Canta-me cantigas para ver se alcanço Que a minhalma durma, tenha paz, descanso, Quando a Morte, em breve, ma vier buscar!...
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PORTUGAL
Maior do que nós, simples mortais, este gigante foi da glória dum povo o semideus radiante. Cavaleiro e pastor, lavrador e soldado, seu torrão dilatou, inóspito montado, numa pátria... E que pátria! A mais formosa e linda que ondas do mar e luz do luar viram ainda! Campos claros de milho moço e trigo loiro; hortas a rir; vergéis noivando em frutos de oiro; trilos de rouxinóis; revoadas de andorinhas; nos vinhedos, pombais: nos montes, ermidinhas; gados nédios; colinas brancas olorosas; cheiro de sol, cheiro de mel, cheiro de rosas; selvas fundas, nevados píncaros, outeiros de olivais; por nogais, frautas de pegureiros; rios, noras gemendo, azenhas nas levadas; eiras de sonho, grutas de génios e de fadas: riso, abundncia, amor, concórdia, Juventude: e entre a harmonia virgiliana um povo rude, um povo montanhês e heróico à beira-mar, sob a graça de Deus a cantar e a lavrar! Pátria feita lavrando e batalhando: aldeias conchegadinhas sempre ao torreão de ameias. Cada vila um castelo. As cidades defesas por muralhas, bastiões, barbacãs, fortalezas; e, a dar fé, a dar vigor, a dar o alento, grimpas de catedrais, zimbórios de convento, campanários de igreja humilde, erguendo à luz, num abraço infinito, os dois braços da cruz! E ele, o herói imortal duma empresa tamanha, em seu tuguriozinho alegre na montanha simples vivia ? paz grandiosa, augusta e mansa! -, sob o burel o arnês, junto do arado a lança. Ao pálido esplendor do ocaso na arribana, di-lo-íeis, sentado à porta da choupana, ermitão misterioso, extático vidente, olhos no mar, a olhar sonambolicamente... «Águas sem fim! Ondas sem fim! Que mundos novos de estranhas plantas e animais, de estranhos povos, ilhas verdes além... para além dessa bruma, diademadas de aurora, embaladas de espuma! Oh, quem fora, através de ventos e procelas, numa barca ligeira, ao vento abrindo as velas, a demandar as ilhas de oiro fulgurantes, onde sonham anões, onde vivem gigantes, onde há topázios e esmeraldas a granel, noites de Olimpo e beijos de mbar e de mel!» E cismava, e cismava... As nuvens eram frotas, navegando em silêncio a paragens ignotas... ? «Ir com elas...Fugir...Fugir!...» ûa manhã, louco, machado em punho, a golpes de titã, abateu, impiedoso, o roble familiar, há mil anos guardando o colmo do seu lar. Fez do tronco num dia uma barca veleira, um anjo à proa, a cruz de Cristo na bandeira... Manhã de heróis... levantou ferro... e, visionário, sobre as águas de Deus foi cumprir seu fadário. Multidões acudindo ululavam de espanto. Velhos de barbas centenárias, rosto em pranto, braços hirtos de dor, chamavam-no... Jamais! Não voltaria mais! Oh! Jamais! Nunca mais! E a barquinha, galgando a vastidão imensa, ia como encantada e levada suspensa para a quimera astral, a músicas de Orfeus: o seu rumo era a luz; seu piloto era Deus! Anos depois, volvia à mesma praia enfim uma galera de oiro e ébano e marfim, atulhando, a estoirar, o profundo porão diamantes de Golconda e rubins de Ceilão!
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ORAçãO AO PãO
Guerra Junqueiro
Com quantos grãos de trigo um pão se fez? Dez mil talvez?
Dez mil almas, dez mil calvários e agonias, Todos os dias,
Para insuflar atentos n´alma impura Duma só criatura!
Homem, levanta a Deus o coração, Ao ver o pão.
Ei-lo em cima da mesa do teu lar; Olha a mesa: um altar!
Ei-lo, o vigor dos braços teus, O pão de Deus!
Ei-lo, o sangue e a alegria, Que teu peito robora e teu crnio alumia!
Ei-lo a fraternidade, Ei-lo, a piedade, Ei-lo, a humildade,
Ei-lo a concórdia, a bem-aventurança, A paz em Deus, tranqüila e mansa!
Comer é comungar. Ajoelha, orando, Em frente desse pão, ou duro ou brando.
Antes que o mordas, tigre carniceiro, Ergue-o a luz, beija-o primeiro!
Depois devora! O pão é corpo e alma Em corpo e alma O comerás, Tigre voraz.
São dez mil almas brancas, cor de Lua, Transmigrando divinas para a tua!
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