Idílios
Filena, ou a saudade
(Pastoril)
( Manuel Maria Barbosa du Bocage )
Que terna, que saudosa cantilena
Ao som da lira Melibeu soltava,
O pastor Melibeu, que por Filena,
Pela branca Filena em vão chorava!
Inda me fere o peito aguda pena,
Quando recordo os ais, que o triste dava,
O pranto que vertia, amargo, e justo
à sombra, que ali faz aquele arbusto.
Tu, maviosa a choros, e a clamores,
Tu, Vénus (Vénus só na formosura)
Luz de meus olhos, únicos amores
Desta alma, e seu prazer, sua ventura;
Que reclinada, amarrotando as flores,
Descansas em meu peito a face pura,
Ouve-me os ais, e as queixas de outro amante.
Que ao teu no ardente extremo é semelhante.
"Céus! (assim começou, e eu escondido
Entre as copadas árvores o ouvia)
Por vós em duras mágoas convertido
Vejo enfim todo o bem, que possuía:
à cndida Filena estar unido
Julgastes que um pastor não merecia:
A mais doce prisão de Amor partistes.
Ajuda, triste lira, os versos tristes.
Mal haja a lei dos fados inclemente!
O seu poder, o seu rigor praguejo:
Morte! Geral verdugo! Estás contente?
Já saciaste o sôfrego desejo?...
Mas Filena inda é viva, inda me sente
Suspirar nos seus braços: inda a beijo!...
Ah meus olhos, morreu: sem alma a vistes.
Ajuda, triste lira, os versos tristes.
Em ti, cara Filena, a sepultura
Tem de Amor, tem das Graças o tesouro;
Ali te arranca a morte acerba, e dura
Da mimosa cabeça as tranças de ouro:
Eis terra, eis cinza, eis nada a formosura...
Ah! Que não pude perceber o agouro
Com que esta perda, oh fados, me advertistes!
Ajuda, triste lira, os versos tristes.
Um dia, há tempos, Lénia, a feiticeira,
Me disse: Grande mal te está guardado!
Não mo quis declarar, e ave agoureira
De noite me piou sobre o telhado:
Cuidei que perderia a sementeira,
O rebanho, o rafeiro... ah desgraçado!
Perdeste mais, e a tanto inda resistes!
Ajuda, triste lira, os versos tristes.
A tua meiga voz, o teu carinho
Maior falta me faz, minha Filena,
Que lá no bosque ao rouxinol sôzinho
Da presa amiga a doce cantilena:
O teu branco, amoroso cordeirinho,
Mal que se viu sem ti, morreu de pena:
Balar saudoso, á montes, vós o ouvistes.
Ajuda, triste lira, os versos tristes.
O meu rebanho definhou de sorte,
Depois que te perdi, que anda caindo;
Seca estes campos o hálito da Morte
Desde que ela sumiu teu gesto lindo:
Rogo-lhe vezes mil, que me transporte
Lá onde, como estrela, estás luzindo,
Lá onde alegre para sempre existes.
Ajuda, triste lira, os versos tristes.
A roseira também, que tu plantaste,
Teu prazer, e prazer da Natureza,
Murchou-se logo assim que te murchaste,
Oh flor na duração, flor na beleza!
A pequenina rola, que apanhaste,
Não comeu mais, finou-se de fraqueza:
Porque blasfémia, ó deuses, me punistes?
Ajuda, triste lira, os versos tristes.
Já pelas selvas, ao raiar da aurora,
Caçando, as tenras aves não persigo;
Tudo me anseia, me enfastia agora,
Nem sofro os que por dó vêm ter comigo:
Figura-me a saudade a toda a hora
Ternas delícias, que logrei contigo.
Ah! Quão depressa, gostos meus, fugistes!
Ajuda, triste lira, os versos tristes.
Como as formigas pelo chão, no Estio,
Ou como as folhas pelo chão, de Inverno,
No aflito coração, que em ais te envio,
Jazem penas cruéis, quais as do Inferno:
Ora me sinto arder, outrhora esfrio,
Desfaz-me em nsias um veneno interno:
Talvez meus pés, oh víboras, feristes!
Ajuda, triste lira, os versos tristes.
Nos troncos, e nos mármores gravemos
Memórias de Filena idolatrada,
Tão digna de suspiros, e de extremos,
De tantos corações tão cobiçada:
Amor! Amor! Seu nome eternizemos...
Ai, que me falta a voz! Socorro, amada;
Conforta-me dos Céus, aonde assistes!
Não mais, á triste lira, ó versos tristes."