Soam vãos, dolorido epicurista, Os versos teus, que a minha dor despreza; Já tive a alma sem descrença presa Desse teu sonho, que perturba a vista.
Da Perfeição segui em vã conquista, Mas vi depressa, já sem a alma acesa, Que a própria idéia em nós dessa beleza Um infinito de nós mesmos dista.
Nem à nossa alma definir podemos A Perfeição em cuja estrada a vida, Achando-a intérmina, a chorar perdemos.
O mar tem fim, o céu talvez o tenha, Mas não a nsia da Cousa indefinida Que o ser indefinida faz tamanha.
Fernando Pessoa
Em Busca da Beleza II
Nem defini-la, nem achá-la, a ela - A Beleza. No mundo não existe. Ai de quem coma alma inda mais triste Nos seres transitórios quer colhê-la!
Acanhe-se a alma porque não conquiste Mais que o banal de cada cousa bela, Ou saiba que ao ardor de querer havê-la - à Perfeição - só a desgraça assiste.
Só quem da vida bebeu todo o vinho, Dum trago ou não, mas sendo até o fundo, Sabe (mas sem remédio) o bom caminho;
Conhece o tédio extremo da desgraça Que olha estupidamente o nauseabundo Cristal inútil da vazia taça.
Fernando Pessoa
Em Busca da Beleza III
Só que puder obter a estupidez Ou a loucura pode ser feliz. Buscar, querer, amar... tudo isto diz Perder, chorar, sofrer, vez após vez.
A estupidez achou sempre o que quis Do círculo banal da sua avidez; Nunca aos loucos o engano se desfez Com quem um falso mundo seu condiz.
Há dois males: verdade e aspiração, E há uma forma só de os saber males: É conhecê-los bem, saber que são
Um o horror real, o outro o vazio - Horror não menos - dois como que vales Duma montanha que ninguém subiu.
Fernando Pessoa
Em Busca da Beleza IV
Leva-me longe, meu suspiro fundo, Além do que deseja e que começa, Lá muito longe, onde o viver se esqueça Das formas metafísicas do mundo.
Aí que o meu sentir vago e profundo O seu lugar exterior conheça, Aí durma em fim, aí enfim faleça O cintilar do espírito fecundo.
Aí . . . mas de que serve imaginar Regiões onde o sonho é verdadeiro Ou terras para o ser atormentar?
É elevar demais a aspiração, E, falhando esse sonho derradeiro, Encontrar mais vazio o coração.
Fernando Pessoa
Em Busca da Beleza V
Braços cruzados, sem pensar nem crer, Fiquemos pois sem mágoas nem desejos. Deixemos beijos, pois o que são beijos? A vida é só o esperar morrer.
Longe da dor e longe do prazer, Conheçamos no sono os benfazejos Poderes únicos; sem urzes, brejos, A sua estrada sabe apetecer.
C'roado de papoilas e trazendo Artes porque com sono tira sonhos, Venha Morfeu, que as almas envolvendo,
Faça a felicidade ao mundo vir Num nada onde sentimo-nos risonhos Só de sentirmos nada já sentir.
Fernando Pessoa
Em Busca da Beleza VI
O sono - Oh, ilusão! - o sono? Quem Logrará esse vácuo ao qual aspira A alma que de aspirar em vão delira E já nem força para querer tem?
Que sono apetecemos? O d'alguém Adormecido na feliz mentira Da sonolência vaga que nos tira Todo o sentir na qual a dor nos vem?
Ilusão tudo! Querer um sono eterno, Um descanso, uma paz, não é senão O último anseio desesperado e vão.
Perdido, resta o derradeiro inferno Do tédio intérmino, esse de já não Nem aspirar a ter aspiração.
Fernando Pessoa
Eu
Sou louco e tenho por memória Uma longínqua e infiel lembrança De qualquer dita transitória Que sonhei ter quando criança.
Depois, malograda trajetória Do meu destino sem esperança, Perdi, na névoa da noite inglória, O saber e o ousar da aliança.
Só guardo como um anel pobre Que a todo herdeiro só faz rico Um frio perdido que me cobre
Como um céu dossel de mendigo, Na curva inútil em que fico Da estrada certa que não sigo.
Fernando Pessoa
Glosa
Quem me roubou a minha dor antiga, E só a vida me deixou por dor ? Quem, entre o incêndio da alma em que o ser periga, Me deixou só no fogo e no torpor ?
Quem fez a fantasia minha amiga, Negando o fruto e emurchecendo a flor ? Ninguém ou o Fado, e a fantasia siga A seu infiel e irreal sabor...
Quem me dispôs para o que não pudesse ? Quem me fadou para o que não conheço Na teia do real que ninguém tece ?
Quem me arrancou ao sonho que me odiava E me deu só a vida em que me esqueço, "Onde a minha saudade a cor se trava ?"
Fernando Pessoa
Venho de longe e trago no perfil
Venho de longe e trago no perfil, Em forma nevoenta e afastada, O perfil de outro ser que desagrada Ao meu actual recorte humano e vil.
Outrora fui talvez, não Boabdil, Mas o seu mero último olhar, da estrada Dado ao deixado vulto de Granada, Recorte frio sob o unido anil...
Hoje sou a saudade imperial Do que já na distncia de mim vi... Eu próprio sou aquilo que perdi...
E nesta estrada para Desigual Florem em esguia glória marginal Os girassóis do império que morri...
Fernando Pessoa
Ah um Soneto!!!
Meu coração é um almirante louco que abandonou a profissão do mar e que a vai relembrando pouco a pouco em casa a passear, a passear...
No movimento (eu mesmo me desloco nesta cadeira, só de o imaginar) o mar abandonado fica em foco nos músculos cansados de parar.
Há saudades nas pernas e nos braços. Há saudades no cérebro por fora. Há grandes raivas feitas de cansaços.
Mas - esta é boa! - era do coração que eu falava... e onde diabo estou eu agora com almirante em vez de sensação?...
Fernando Pessoa
Aconteceu-me do Alto do Infinito
Aconteceu-me do alto do infinito Esta vida. Através de nevoeiros, Do meu próprio ermo ser fumos primeiros, Vim ganhando, e través estranhos ritos
De sombra e luz ocasional, e gritos Vagos ao longe, e assomos passageiros De saudade incógnita, luzeiros De divino, este ser fosco e proscrito...
Caiu chuva em passados que fui eu. Houve planícies de céu baixo e neve Nalguma cousa de alma do que é meu.
Narrei-me à sombra e não me achei sentido. Hoje sei-me o deserto onde Deus teve Outrora a sua capital de olvido...
Fernando Pessoa
Adagas Cujas Jóias Velhas Galas
Adagas cujas jóias velhas galas... Opalesci amar-me entre mãos raras, E fluido a febres entre um lembrar de aras, O convés sem ninguém cheio de malas...
O íntimo silêncio das opalas Conduz orientes até jóias caras, E o meu anseio vai nas rotas claras De um grande sonho cheio de ócio e salas...
Passa o cortejo imperial, e ao longe O povo só pelo cessar das lanças Sabe que passa o seu tirano, e estruge
Sua ovação, e erguem as crianças Mas o teclado as tuas mãos pararam E indefinidamente repousaram...
Fernando Pessoa
Ah, mas aqui, onde irreais erramos
Ah, mas aqui, onde irreais erramos, Dormimos o que somos, e a verdade, Inda que enfim em sonhos a vejamos, Vemo-la, porque em sonho, em falsidade.
Sombras buscando corpos, se os achamos Como sentir a sua realidade? Com mãos de sombra, Sombras, que tocamos? Nosso toque é ausência e vacuidade.
Quem desta Alma fechada nos liberta? Sem ver, ouvimos para além da sala De ser: mas como, aqui, a porta aberta?
Calmo na falsa morte a nós exposto, O Livro ocluso contra o peito posto, Nosso Pai Roseacruz conhece e cala.
A minha vida é um barco abandonado Infiel, no ermo porto, ao seu destino. Por que não ergue ferro e segue o atino De navegar, casado com o seu fado ?
Ah! falta quem o lance ao mar, e alado Torne seu vulto em velas; peregrino Frescor de afastamento, no divino Amplexo da manhã, puro e salgado.
Morto corpo da ação sem vontade Que o viva, vulto estéril de viver, Boiando à tona inútil da saudade.
Os limos esverdeiam tua quilha, O vento embala-te sem te mover, E é para além do mar a ansiada Ilha.
Fernando Pessoa
A Praça
A praça da Figueira de manhã, Quando o dia é de sol (como acontece Sempre em Lisboa), nunca em mim esquece, Embora seja uma memória vã.
Há tanta coisa mais interessante Que aquele lugar lógico e plebeu, Mas amo aquilo, mesmo aqui ... Sei eu Por que o amo? Não importa. Adiante ...
Isto de sensações só vale a pena Se a gente se não põe a olhar para elas. Nenhuma delas em mim serena...
De resto, nada em mim é certo e está De acordo comigo próprio. As horas belas São as dos outros ou as que não há.
Fernando Pessoa
Ah, mas aqui, onde irreais erramos
Ah, mas aqui, onde irreais erramos, Dormimos o que somos, e a verdade, Inda que enfim em sonhos a vejamos, Vemo-la, porque em sonho, em falsidade.
Sombras buscando corpos, se os achamos Como sentir a sua realidade? Com mãos de sombra, Sombras, que tocamos? Nosso toque é ausência e vacuidade.
Quem desta Alma fechada nos liberta? Sem ver, ouvimos para além da sala De ser: mas como, aqui, a porta aberta?
Calmo na falsa morte a nós exposto, O Livro ocluso contra o peito posto, Nosso Pai Roseacruz conhece e cala.
Fernando Pessoa
As tuas mãos terminam em segredo
As tuas mãos terminam em segredo. Os teus olhos são negros e macios Cristo na cruz os teus seios (?) esguios E o teu perfil princesas no degredo...
Entre buxos e ao pé de bancos frios Nas entrevistas alamedas, quedo O vendo põe o seu arrastado medo Saudoso o longes velas de navios.
Mas quando o mar subir na praia e for Arrasar os castelos que na areia As crianças deixaram, meu amor,
Será o haver cais num mar distante... Pobre do rei pai das princesas feias No seu castelo à rosa do Levante !
Fernando Pessoa
Como uma voz de fonte que cessasse
Como uma voz de fonte que cessasse (E uns para os outros nossos vãos olhares Se admiraram), p'ra além dos meus palmares De sonho, a voz que do meu tédio nasce
Parou... Apareceu já sem disfarce De música longínqua, asas nos ares, O mistério silente como os mares, Quando morreu o vento e a calma pasce...
A paisagem longínqua só existe Para haver nela um silêncio em descida P'ra o mistério, silêncio a que a hora assiste...
E, perto ou longe, grande lago mudo, O mundo, o informe mundo onde há a vida... E Deus, a Grande Ogiva ao fim de tudo...
Fernando Pessoa
Em Busca da Beleza I
Soam vãos, dolorido epicurista, Os versos teus, que a minha dor despreza; Já tive a alma sem descrença presa Desse teu sonho, que perturba a vista.
Da Perfeição segui em vã conquista, Mas vi depressa, já sem a alma acesa, Que a própria idéia em nós dessa beleza Um infinito de nós mesmos dista.
Nem à nossa alma definir podemos A Perfeição em cuja estrada a vida, Achando-a intérmina, a chorar perdemos.
O mar tem fim, o céu talvez o tenha, Mas não a nsia da Cousa indefinida Que o ser indefinida faz tamanha.
Fernando Pessoa
Depois que o som da terra, que é não tê-lo
Depois que o som da terra, que é não tê-lo, Passou, nuvem obscura, sobre o vale E uma brisa afastando meu cabelo Me diz que fale, ou me diz que cale,
A nova claridade veio, e o sol Depois, ele mesmo , e tudo era verdade, Mas quem me deu sentir e a sua prole? Quem me vendeu nas hastas da vontade?
Nada. Uma nova obliquação da luz, Interregno factício onde a erva esfria. E o pensamento inútil se conduz
Até saber que nada vale ou pesa. E não sei se isto me ensimesma ou alheia, Nem sei se é alegria ou se é tristeza.
Fernando Pessoa
Ela ia, tranqüila pastorinha
Ela ia, tranqüila pastorinha, Pela estrada da minha imperfeição. Segui-a, como um gesto de perdão, O seu rebanho, a saudade minha...
"Em longes terras hás de ser rainha Um dia lhe disseram, mas em vão... Seu vulto perde-se na escuridão... Só sua sombra ante meus pés caminha...
Deus te dê lírios em vez desta hora, E em terras longe do que eu hoje sinto Serás, rainha não, mas só pastora _
Só sempre a mesma pastorinha a ir, E eu serei teu regresso, esse indistinto Abismo entre o meu sonho e o meu porvir...
Fernando Pessoa
Emissário de um rei desconhecido
Emissário de um rei desconhecido, Eu cumpro informes instruções de além, E as bruscas frases que aos meus lábios vêm Soam-me a um outro e anômalo sentido...
Inconscientemente me divido Entre mim e a missão que o meu ser tem, E a glória do meu Rei dá-me desdém Por este humano povo entre quem lido...
Não sei se existe o Rei que me mandou. Minha missão será eu a esquecer, Meu orgulho o deserto em que em mim estou...
Mas há ! Eu sinto-me altas tradições De antes de tempo e espaço e vida e ser... Já viram Deus as minhas sensações...
Fernando Pessoa
Entre o bater rasgado dos pendões
Entre o bater rasgado dos pendões E o cessar dos clarins na tarde alheia, A derrota ficou : como uma cheia Do mal cobriu os vagos batalhões.
Foi em vão que o Rei louco os seus varões Trouxe ao prolixo prélio, sem idéia. Água que mão infiel verteu na areia _ Tudo morreu, sem rastro e sem razões.
A noite cobre o campo, que o Destino Com a morte tornou abandonado. Cessou, com cessar tudo, o desatino.
Só no luar que nasce os pendões rotos 'Strelam no absurdo campo desolado Uma derrota heráldica de ignotos.
Fernando Pessoa
Soneto Já Antigo
Olha, Daisy: quando eu morrer tu hás de dizer aos meus amigos aí de Londres, embora não o sintas, que tu escondes a grande dor da minha morte. Irás de
Londres p'ra Iorque, onde nasceste (dizes... que eu nada que tu digas acredito), contar àquele pobre rapazito que me deu tantas horas tão felizes,
Embora não o saibas, que morri... mesmo ele, a quem eu tanto julguei amar, nada se importará... Depois vai dar
a notícia a essa estranha Cecily que acreditava que eu seria grande... Raios partam a vida e quem lá ande!
Fernando Pessoa
Paira no ambíguo destinar-se
Paira no ambíguo destinar-se Entre longínquos precipícios, A nsia de dar-se preste a dar-se Na sombra vaga entre suplícios,
Roda dolente do parar-se Para, velados sacrifícios, Não ter terraços sobre errar-se Nem ilusões com interstícios,
Tudo velado, e o ócio a ter-se De leque em leque, a aragem fina Com consciência de perder-se...
Tamanha a flama e pequenina Pensar na mágoa japonesa Que ilude as sirtes da Certeza.