Escrevo diante da janela aberta. Minha caneta é cor das venezianas: Verde!... E que leves, lindas filigranas Desenha o sol na página deserta!
Não sei que paisagista doidivanas Mistura os tons... acerta... desacerta... Sempre em busca de nova descoberta, Vai colorindo as horas quotidianas...
Jogos da luz dançando na folhagem! Do que eu ia escrever até me esqueço... Pra que pensar? Também sou da paisagem...
Vago, solúvel no ar, fico sonhando... E me transmuto... iriso-me... estremeço... Nos leves dedos que me vão pintando!
Mário Quintana
A Rua dos Cataventos - II
Dorme, ruazinha... E tudo escuro... E os meus passos, quem é que pode ouvi-los? Dorme o teu sono sossegado e puro, Com teus lampiões, com teus jardins tranqüilos
Dorme... Não há ladrões, eu te asseguro... Nem guardas para acaso persegui-los... Na noite alta, como sobre um muro, As estrelinhas cantam como grilos...
O vento está dormindo na calçada, O vento enovelou-se como um cão... Dorme, ruazinha... Não há nada...
Só os meus passos... Mas tão leves são Que até parecem, pela madrugada, Os da minha futura assombração...
Mário Quintana
A Rua dos Cataventos - VI
Na minha rua há um menininho doente. Enquanto os outros partem para a escola, Junto à janela, sonhadoramente, Ele ouve o sapateiro bater sola.
Ouve também o carpinteiro, em frente, Que uma canção napolitana engrola. E pouco a pouco, gradativamente, O sofrimento que ele tem se evola. . .
Mas nesta rua há um operário triste: Não canta nada na manhã sonora E o menino nem sonha que ele existe.
Ele trabalha silenciosamente. . . E está compondo este soneto agora, Pra alminha boa do menino doente. . .
Mário Quintana
A Rua dos Cataventos - IX - Para Emílio Kemp
É a mesma a ruazinha sossegada. Com as velhas rondas e as canções de outrora... E os meus lindos pregões da madrugada Passam cantando ruazinha em fora!
Mas parece que a luz está cansada... E, não sei como, tudo tem, agora, Essa tonalidade amarelada Dos cartazes que o tempo descolora...
Sim, desses cartazes ante os quais Nós às vezes paramos, indecisos... Mas para quê?... Se não adiantam mais!...
Pobres cartazes por aí afora Que inda anunciam: - Alegrias - Risos Depois do Circo já ter ido embora!...
Mário Quintana
A Rua dos Cataventos - X
Eu faço versos como os saltimbancos Desconjuntam os ossos doloridos. A entrada é livre para os conhecidos... Sentai, Amadas, nos primeiros bancos!
Vão começar as convulsões e arrancos Sobre os velhos tapetes estendidos... Olhai o coração que entre gemidos Giro na ponta dos meus dedos brancos!
"Meu Deus! Mas tu não tu não mudas o programa!" Protesta a clara voz das Bem-Amadas. "Que tédio!" o coro dos Amigos clama.
"Mas que vos dar de novo e de imprevisto?" Digo... e retorço as pobres mãos cansadas: "Eu sei chorar... eu sei sofrer... Só isto!"
Mário Quintana
A Rua dos Cataventos - XI - Para Antônio Nobre, à maneira do mesmo
Contigo fiz, ainda menininho, Todo o meu Curso d'Alma... e desce cedo Aprendi a sofrer devagarinho, A guardar meu amor como um segredo...
Nas minhas chagas vinhas pôr o dedo E eu era o Triste, o Doido, o Pobrezinho! Amava, à noite, as Luas de bruxedo, Chamava o Pôr de Sol de Meu Padrinho...
Anto querido, esse teu livro "Só" Encheu de luar a minha infncia triste! E ninguém mais há de ficar tão só:
Sofreste a nossa dor, como Jesus... E nesta Costa d'África surgiste Para ajudar-nos a levar a Cruz!...
Mário Quintana
A Rua dos Cataventos - XII - Para Erico Verissimo
O dia abriu seu pára-sol bordado De nuvens e de verde ramaria. E estava até um fumo, que subia, Mi-nu-ci-o-sa-men-te desenhado.
Depois surgiu, no céu azul arqueado, A Lua - a Lua! - em pleno meio-dia. Na rua, um menininho que seguia Parou, ficou a olhá-la admirado...
Pus meus sapatos na janela alta, Sobre o rebordo... Céu é que lhes falta Pra suportarem a existência rude!
E eles sonham, imóveis, deslumbrados, Que são dois velhos barcos, encalhados Sobre a margem tranqüila de um açude...
Mário Quintana
A Rua dos Cataventos - XVII
Da vez primeira em que me assassinaram, Perdi um jeito de sorrir que eu tinha. Depois, a cada vez que me mataram, Foram levando qualquer coisa minha.
Hoje, dos meu cadáveres eu sou O mais desnudo, o que não tem mais nada. Arde um toco de Vela amarelada, Como único bem que me ficou.
Vinde! Corvos, chacais, ladrões de estrada! Pois dessa mão avaramente adunca Não haverão de arracar a luz sagrada!
Aves da noite! Asas do horror! Voejai! Que a luz trêmula e triste como um ai, A luz de um morto não se apaga nunca!
Mário Quintana
A Rua dos Cataventos - XXXV
Quando eu morrer e no frescor de lua Da casa nova me quedar a sós, Deixa-me em paz na minha quieta rua... Nada mais quero com nenhum de vós!
Quero é ficar com alguns poemas tortos Que andei tentando endireitar em vão... Que lindo a Eternidade, amigos mortos, Para as torturas lentas da Expressão!...
Eu lavarei comigo as madrugadas, Pôr de sóis, algum luar, asas em bando, Mais o rir das primeiras namoradas...
E um dia a morte há de fitar com espanto Os fios da vida que eu urdi, cantando, Na orla negra do seu negro manto...
Mário Quintana
Se eu Fosse um Padre
Se eu fosse um padre, eu, nos meus sermões, não falaria em Deus nem no Pecado - muito menos no Anjo Rebelado e os encantos das suas seduções,
não citaria santos e profetas: nada das suas celestiais promessas ou das suas terríveis maldições... Se eu fosse um padre eu citaria os poetas,
Rezaria seus versos, os mais belos, desses que desde a infncia me embalaram e quem me dera que alguns fossem meus!
Porque a poesia purifica a alma ... a um belo poema - ainda que de Deus se aparte - um belo poema sempre leva a Deus!
Mário Quintana
Os Parceiros
Sonhar é acordar-se para dentro: de súbito me vejo em pleno sonho e no jogo em que todo me concentro mais uma carta sobre a mesa ponho.
Mais outra! É o jogo atroz do Tudo ou Nada! E quase que escurece a chama triste... E, a cada parada uma pancada, o coração, exausto, ainda insiste.
Insiste em quê?Ganhar o quê? De quem? O meu parceiro...eu vejo que ele tem um riso silencioso a desenhar-se
numa velha caveira carcomida. Mas eu bem sei que a morte é seu disfarce... Como também disfarce é a minha vida!
Mário Quintana
Ah! Os Relógios
Amigos, não consultem os relógios quando um dia eu me for de vossas vidas em seus fúteis problemas tão perdidas que até parecem mais uns necrológios...
Porque o tempo é uma invenção da morte: não o conhece a vida - a verdadeira - em que basta um momento de poesia para nos dar a eternidade inteira.
Inteira, sim, porque essa vida eterna somente por si mesma é dividida: não cabe, a cada qual, uma porção.
E os Anjos entreolham-se espantados quando alguém - ao voltar a si da vida - acaso lhes indaga que horas são...
Gadêa... Pelichek... Sebastião... Lobo Alvim... Ah, meus velhos camaradas! Aonde foram vocês? Onde é que estão Aquelas nossas ideais noitadas?
Fiquei sozinho... Mas não creio, não, Estejam nossas almas separadas! às vezes sinto aqui, nestas calçadas, O passo amigo de vocês... E então
Não me constranjo de sentir-me alegre, De amar a vida assim, por mais que ela nos minta... E no meu romantismo vagabundo
Eu sei que nestes céus de Porto Alegre É para nós que inda S. Pedro pinta Os mais belos crepúsculos do mundo!...
Mário Quintana
Mario Quintana
"Olho em redor do bar em que escrevo estas linhas. Aquele homem ali no balcão, caninha após caninha, nem desconfia que se acha conosco desde o início das eras. Pensa que está somente afogando problemas dele, João Silva... Ele está é bebendo a milenar inquietação do mundo!"
Eu queria trazer-te uns versos muito lindos
Mario Quintana
Eu queria trazer-te uns versos muito lindos colhidos no mais íntimo de mim... Suas palavras seriam as mais simples do mundo, porém não sei que luz as iluminaria que terias de fechar teus olhos para as ouvir... Sim! Uma luz que viria de dentro delas, como essa que acende inesperadas cores nas lanternas chinesas de papel! Trago-te palavras, apenas... e que estão escritas do lado de fora do papel... Não sei, eu nunca soube o que dizer-te e este poema vai morrendo, ardente e puro, ao vento da Poesia... como uma pobre lanterna que incendiou!
Estes versos são publicados nesta data, 30 de julho de 2006, como uma homenagem ao poeta Mario Quintana, que estaria completando 100 anos de idade, se vivo fosse.