|    A Hipocrisia do Amor ao Povo   Estes 
amam o povo, mas não desejariam, por interesse do próprio amor, que saísse do 
passo  em 
que se encontra; deleitam-se com a ingenuidade da arte popular, com o imperfeito 
pensamento,  as 
superstições e as lendas;  vêem-se generosos e sensíveis quando se debruçam sobre a 
classe inferior e traduzem,  na 
linguagem adamada, o que dela julgam perceber;  é 
muito interessante o animal que examinam, mas que não tente o animal libertar-se 
da sua condição;  estragaria todo o quadro, toda a equilibrada posição; em 
nome da estética e de tudo o resto  convém que se mantenha.    Há 
também os que adoram o povo e combatem por ele mas pouco mais o julgam do que um 
meio;  a 
meta a atingir é o domínio do mesmo povo por que parecem sacrificar-se; 
 bate-lhes no peito um coração de altos senhores; se 
vieram parar a este lado da batalha  foi 
porque os acidentes os repeliram das trincheiras opostas ou aqui viram maneira 
mais segura  de 
satisfazer o vão desejo de mandar;  nestes não encontraremos a frase preciosa, a afectada 
sensibilidade, o retoque literário;  preferem o estilo de barricada; mas, como nos outros, é o 
som do oco tambor  retórico o último que se ouve. Só um grupo reduzido 
defende o povo e o deseja elevar sem ter por ele nenhuma espécie de paixão;
 em 
primeiro lugar, porque logo reprimiriam dentro em si todo o movimento que 
percebessem  nascido de impulsos sentimentais; em segundo lugar, 
porque tal atitude os impediria de ver as  soluções claras e justas que acima de tudo procuram 
alcançar; e, finalmente, porque lhes é impossível  permanecer em êxtase diante do que é culturalmente pobre, 
artisticamente grosseiro, e ivado 
dos muitos defeitos que trazem consigo a dependência e a miséria em que sempre o 
têm  colocado os que mais o cantam, o admiram e o protegem. 
Interessa-nos o povo porque nele se apresenta um feixe de problemas que 
solicitam a inteligência
 e a 
vontade; um 
problema de justiça económica, um problema de justiça política, 
 um 
problema de equilíbrio social, um problema de ascensão à cultura, e de ascensão 
o mais rápida  possível da massa enorme até hoje tão abandonada e 
desprezada;  logo 
que eles se resolvam terminarão cuidados e interesses; como se apaga o cálculo 
que serviu para  revelar um valor; temos por ideal construir e firmar o 
reino do bem; se houve benefício  para 
o povo, só veio por acréscimo;  não é 
essa, de modo algum, a nossa última tenção. 
 Agostinho da Silva, in 
'Considerações'
     
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