É então que  ela me diz,  apontando para a cara risonha do seu neto de três  anos, "este até já anda no psicólogo". Eu fiquei sem saber o que dizer,  tanto  mais que a Lurdes falara com um indisfarçável orgulho na voz, assim como  se  dissesse, "este já anda no judo e é cinturão negro".
 Que eu  soubesse não tinha  havido revolução de maior na vida da criança, nem  pais separados, nem um novo irmão, nem nenhum morto, mas a Lurdes, com  um  sorriso condescendente, lá explicou que o recurso ao psicólogo se devia  ao facto  de a criança ir entrar agora pela primeira vez para a escola infantil:  "Eventualmente poderá haver um problema de rejeição da escola, e é  preciso  tratar." Ainda perguntei por que não eram os pais a ocupar-se disso -  mas logo a  Lurdes disse que nem pensar, porque os pais não tinham "preparação  técnica".
 E pronto. Lá  vai a criança,  de três anos de idade, todas as semanas ao  psicólogo, que a ajuda a resolver um problema que muito possivelmente  ela nem  nunca terá. Ou seja: que lhe dirá (espero...) aquilo que nós todos  dizemos às  nossas crianças em alturas semelhantes: vais gostar muito de brincar com  os  outros meninos, vais aprender muitos jogos, e muitas cantigas,  etc.,etc...
 Mas hoje os  pais já quase não  sabem falar ou brincar com as crianças. Pensam  que brincar é uma coisa que só se faz diante de um ecrã. Brincar com uma  criança  é, cada vez mais, pô-las a ver televisão, ou atirar-lhes com um  computador para  que fiquem horas a fazer jogos.
 E não há nada  mais triste do  que uma pessoa que não sabe conversar nem  brincar com uma criança.
 Uma pessoa que  olha para uma  criança como se ela fosse um país estrangeiro.  Um país inimigo.
 Por isso,  despeço-me da  Lurdes e chego a casa estupidamente cheia de saudades  da minha mesa da casa de jantar, que range mal se lhe toca, que tem a  tábua do  meio partida e as pernas desengonçadas - mas que os meus filhos me  proíbem de  substituir, porque foi nela que o pai os ensinou a jogar ping-pong; e  nem me  importo com os buracos ainda visíveis na parede ao fundo do corredor, do  tempo  em que lá estava pregado um cesto de basquete onde todos exercitavam a  pontaria;  e lembro a choradeira que foi no dia em que decidimos lavar a parede do  quarto  do meu filho (o rapaz já tinha entrado na faculdade!) onde ele e o pai  escreviam  todas as coisas que queriam dizer um ao outro e às vezes não tinham  coragem.
 E nunca sequer  nos passou  pela cabeça saber se tínhamos ou não preparação  técnica.
  in Opinião -  Jornal de Notícias -  2009-10-24