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Respuesta  Mensaje 1 de 3 en el tema 
De: QUIM TROVADOR  (Mensaje original) Enviado: 30/11/2009 08:51
 

 

  TELHA DE VIDRO

Rachel de Queiroz

Quando a moça da cidade chegou
veio morar na fazenda,
na casa velha...
Tão velha!
Quem fez aquela casa foi o bisavô...
Deram-lhe para dormir a camarinha,
uma alcova sem luzes, tão escura!
mergulhada na tristura
de sua treva e de sua única portinha...

A moça não disse nada,
mas mandou buscar na cidade
uma telha de vidro...
Queria que ficasse iluminada
sua camarinha sem claridade...

Agora,
o quarto onde ela mora
é o quarto mais alegre da fazenda,
tão claro que, ao meio dia, aparece uma
renda de arabesco de sol nos ladrilhos
vermelhos,
que — coitados — tão velhos
só hoje é que conhecem a luz doa dia...
A luz branca e fria
também se mete às vezes pelo clarão
da telha milagrosa...
Ou alguma estrela audaciosa
careteia
no espelho onde a moça se penteia.

Que linda camarinha! Era tão feia!
— Você me disse um dia
que sua vida era toda escuridão
cinzenta,
fria,
sem um luar, sem um clarão...
Por que você na experimenta?
A moça foi tão vem sucedida...
Ponha uma telha de vidro em sua vida!



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Respuesta  Mensaje 2 de 3 en el tema 
De: QUIM TROVADOR Enviado: 01/12/2009 18:59

Tangerine-Girl

Rachel de Queiroz

 

De princípio a interessou o nome da aeronave: não "zepelim" nem dirigível, ou qualquer outra coisa antiquada; o grande fuso de metal brilhante chamava-se modernissimamente blimp. Pequeno como um brinquedo, independente, amável. A algumas centenas de metros da sua casa ficava a base aérea dos soldados americanos e o poste de amarração dos dirigíveis. E de vez em quando eles deixavam o poste e davam uma volta, como pássaros mansos que abandonassem o poleiro num ensaio de vôo. Assim, de começo, aos olhos da menina, o blimp existia como uma coisa em si — como um animal de vida própria; fascinava-a como prodígio mecnico que era, e principalmente ela o achava lindo, todo feito de prata, igual a uma jóia, librando-se majestosamente pouco abaixo das nuvens. Tinha coisas de ídolo, evocava-lhe um pouco o gênio escravo de Aladim. Não pensara nunca em entrar nele; não pensara sequer que pudesse alguém andar dentro dele. Ninguém pensa em cavalgar uma águia, nadar nas costas de um golfinho; e, no entanto, o olhar fascinado acompanha tanto quanto pode águia e golfinho, numa admiração gratuita — pois parece que é mesmo uma das virtudes da beleza essa renúncia de nós próprios que nos impõe, em troca de sua contemplação pura e simples.

Os olhos da menina prendiam-se, portanto, ao blimp sem nenhum desejo particular, sem a sombra de uma reivindicação. Verdade que via lá dentro umas cabecinhas espiando, mas tão minúsculas que não davam impressão de realidade — faziam parte da pintura, eram elemento decorativo, obrigatório como as grandes letras negras U. S. Navy gravadas no bojo de prata. Ou talvez lembrassem aqueles perfis recortados em folha que fazem de chofer nos automóveis de brinquedo.

O seu primeiro contato com a tripulação do dirigível começou de maneira puramente ocasional. Acabara o café da manhã; a menina tirara a mesa e fora à porta que dá para o laranjal, sacudir da toalha as migalhas de pão. Lá de cima um tripulante avistou aquele pano branco tremulando entre as árvores espalhadas e a areia, e o seu coração solitário comoveu-se. Vivia naquela base como um frade no seu convento — sozinho entre soldados e exortações patrióticas. E ali estava, juntinho ao oitão da casa de telhado vermelho, sacudindo um pano entre a mancha verde das laranjeiras, uma mocinha de cabelo ruivo. O marinheiro agitou-se todo com aquele adeus. Várias vezes já sobrevoara aquela casa, vira gente embaixo entrando e saindo; e pensara quão distantes uns dos outros vivem os homens, quão indiferentes passam entre si, cada um trancado na sua vida. Ele estava voando por cima das pessoas, vendo-as, espiando-as, e, se algumas erguiam os olhos, nenhuma pensava no navegador que ia dentro; queriam só ver a beleza prateada vogando pelo céu.

Mas agora aquela menina tinha para ele um pensamento, agitava no ar um pano, como uma bandeira; decerto era bonita — o sol lhe tirava fulgurações de fogo do cabelo, e a silhueta esguia se recortava claramente no fundo verde-e-areia. Seu coração atirou-se para a menina num grande impulso agradecido; debruçou-se à janela, agitou os braços, gritou: "Amigo!, amigo!"— embora soubesse que o vento, a distncia, o ruído do motor não deixariam ouvir-se nada. Ficou incerto se ela lhe vira os gestos e quis lhe corresponder de modo mais tangível. Gostaria de lhe atirar uma flor, uma oferenda. Mas que podia haver dentro de um dirigível da Marinha que servisse para ser oferecido a uma pequena? O objeto mais delicado que encontrou foi uma grande caneca de louça branca, pesada como uma bala de canhão, na qual em breve lhe iriam servir o café. E foi aquela caneca que o navegante atirou; atirou, não: deixou cair a uma distncia prudente da figurinha iluminada, lá embaixo; deixou-a cair num gesto delicado, procurando abrandar a força da gravidade, a fim de que o objeto não chegasse sibilante como um projétil, mas suavemente, como uma dádiva.

A menina que sacudia a toalha erguera realmente os olhos ao ouvir o motor do blimp. Viu os braços do rapaz se agitarem lá em cima. Depois viu aquela coisa branca fender o ar e cair na areia; teve um susto, pensou numa brincadeira de mau gosto — uma pilhéria rude de soldado estrangeiro. Mas quando viu a caneca branca pousada no chão, intacta, teve uma confusa intuição do impulso que a mandara; apanhou-a, leu gravadas no fundo as mesmas letras que havia no corpo do dirigível: U. S. Navy. Enquanto isso, o blimp, em lugar de ir para longe, dava mais uma volta lenta sobre a casa e o pomar. Então a mocinha tornou a erguer os olhos e, deliberadamente dessa vez, acenou com a toalha, sorrindo e agitando a cabeça. O blimp fez mais duas voltas e lentamente se afastou — e a menina teve a impressão de que ele levava saudades. Lá de cima, o tripulante pensava também — não em saudades, que ele não sabia português, mas em qualquer coisa pungente e doce, porque, apesar de não falar nossa língua, soldado americano também tem coração.

Foi assim que se estabeleceu aquele rito matinal. Diariamente passava o blimp e diariamente a menina o esperava; não mais levou a toalha branca, e às vezes nem sequer agitava os braços: deixava-se estar imóvel, mancha clara na terra banhada de sol. Era uma espécie de namoro de gavião com gazela: ele, fero soldado cortando os ares; ela, pequena, medrosa, lá embaixo, vendo-o passar com os olhos fascinados. Já agora, os presentes, trazidos de propósito da base, não eram mais a grosseira caneca improvisada; caíam do céu números da Life e da Time, um gorro de marinheiro e, certo dia, o tripulante tirou do bolso o seu lenço de seda vegetal perfumado com essência sintética de violetas. O lenço abriu-se no ar e veio voando como um papagaio de papel; ficou preso afinal nos ramos de um cajueiro, e muito trabalho custou à pequena arrancá-lo de lá com a vara de apanhar cajus; assim mesmo ainda o rasgou um pouco, bem no meio.

Mas de todos os presentes o que mais lhe agradava era ainda o primeiro: a pesada caneca de pó de pedra. Pusera-a no seu quarto, em cima da banca de escrever. A princípio cuidara em usá-la na mesa, às refeições, mas se arreceou da zombaria dos irmãos. Ficou guardando nela os lápis e canetas. Um dia teve idéia melhor e a caneca de louça passou a servir de vaso de flores. Um galho de manacá, um bogari, um jasmim-do-cabo, uma rosa menina, pois no jardim rústico da casa de campo não havia rosas importantes nem flores caras.

Pôs-se a estudar com mais afinco o seu livro de conversação inglesa; quando ia ao cinema, prestava uma atenção intensa aos diálogos, a fim de lhes apanhar não só o sentido, mas a pronúncia. Emprestava ao seu marinheiro as figuras de todos os galãs que via na tela, e sucessivamente ele era Clark Gable, Robert Taylor ou Cary Grant. Ou era louro feito um mocinho que morria numa batalha naval do Pacífico, cujo nome a fita não dava; chegava até a ser, às vezes, careteiro e risonho como Red Skelton. Porque ela era um pouco míope, mal o vislumbrava, olhando-o do chão: via um recorte de cabeça, uns braços se agitando; e, conforme a direção dos raios do sol, parecia-lhe que ele tinha o cabelo louro ou escuro.

Não lhe ocorria que não pudesse ser sempre o mesmo marinheiro. E, na verdade, os tripulantes se revezariam diariamente: uns ficavam de folga e iam passear na cidade com as pequenas que por lá arranjavam; outros iam embora de vez para a África, para a Itália. No posto de dirigíveis criava-se aquela tradição da menina do laranjal. Os marinheiros puseram-lhe o apelido de "Tangerine-Girl". Talvez por causa do filme de Dorothy Lamour, pois Dorothy Lamour é, para todas as forças armadas norte-americanas, o modelo do que devem ser as moças morenas da América do Sul e das ilhas do Pacífico. Talvez porque ela os esperava sempre entre as laranjeiras. E talvez porque o cabelo ruivo da pequena, quando brilhava á luz da manhã, tinha um brilho acobreadao de tangerina madura. Um a um, sucessivamente, como um bem de todos, partilhavam eles o namoro com a garota Tangerine. O piloto da aeronave dava voltas, obediente, voando o mais baixo que lhe permitiam os regulamentos, enquanto 0 outro, da janelinha, olhava e dava adeus.

Não sei por que custou tanto a ocorrer aos rapazes a idéia de atirar um bilhete. Talvez pensassem que ela não os entenderia. Já fazia mais de um mês que sobrevoavam a casa, quando afinal o primeiro bilhete caiu; fora escrito sobre uma cara rosada de rapariga na capa de uma revista: laboriosamente, em letras de imprensa, com os rudimentos de português que haviam aprendido da boca das pequenas, na cidade: "Dear Tangeríne-Gírl. Please você vem hoje (today) base X. Dancing, show. Oito horas P.M." E no outro ngulo da revista, em enormes letras, o "Amigo", que é a palavra de passe dos americanos entre nós.

A pequena não atinou bem com aquele "Tangerine-Girl". Seria ela? Sim, decerto... e aceitou o apelido, como uma lisonja. Depois pensou que as duas letras, do fim: "P.M.", seriam uma assinatura. Peter, Paul, ou Patsy, como o ajudante de Nick Carter? Mas uma lembrança de estudo lhe ocorreu: consultou as páginas finais do dicionário, que tratam de abreviaturas, e verificou, levemente decepcionada, que aquelas letras queriam dizer "a hora depois do meio-dia".

Não pudera acenar uma resposta porque só vira o bilhete ao abrir a revista, depois que o blimp se afastou. E estimou que assim o fosse: sentia-se tremendamente assustada e tímida ante aquela primeira aproximação com o seu aeronauta. Hoje veria se ele era alto e belo, louro ou moreno. Pensou em se esconder por trás das colunas do portão, para o ver chegar - e não lhe falar nada. Ou talvez tivesse coragem maior e desse a ele a sua mão; juntos caminhariam até a base, depois dançariam um fox langoroso, ele lhe faria ao ouvido declarações de amor em inglês, encostando a face queimada de sol ao seu cabelo. Não pensou se o pessoal de casa lhe deixaria aceitar o convite. Tudo se ia passando como num sonho — e como num sonho se resolveria, sem lutas nem empecilhos.

Muito antes do escurecer, já estava penteada, vestida. Seu coração batia, batia inseguro, a cabeça doía um pouco, o rosto estava em brasas. Resolveu não mostrar o convite a ninguém; não iria ao show; não dançaria, conversaria um pouco com ele no portão. Ensaiava frases em inglês e preparava o ouvido para as doces palavras na língua estranha. às sete horas ligou o rádio e ficou escutando languidamente o programa de swings. Um irmão passou, fez troça do vestido bonito, naquela hora, e ela nem o ouviu. às sete e meia já estava na varanda, com o olho no portão e na estrada. às dez para as oito, noite fechada já há muito, acendeu a pequena lmpada que alumiava o portão e saiu para o jardim. E às oito em ponto ouviu risadas e tropel de passos na estrada, aproximando-se.

Com um recuo assustado verificou que não vinha apenas o seu marinheiro enamorado, mas um bando ruidoso deles. Viu-os aproximarem-se, trêmula. Eles a avistaram, cercaram o portão — até parecia manobra militar —, tiraram os gorros e foram se apresentando numa algazarra jovial.

E, de repente, mal lhes foi ouvindo os nomes, correndo os olhos pelas caras imberbes, pelo sorriso esportivo e juvenil dos rapazes, fitando-os de um em um, procurando entre eles o seu príncipe sonhado — ela compreendeu tudo. Não existia o seu marinheiro apaixonado — nunca fora ele mais do que um mito do seu coração. Jamais houvera um único, jamais "ele" fora o mesmo. Talvez nem sequer o próprio blimp fosse o mesmo...

Que vergonha, meu Deus! Dera adeus a tanta gente; traída por uma aparência enganosa, mandara diariamente a tantos rapazes diversos as mais doces mensagens do seu coração, e no sorriso deles, nas palavras cordiais que dirigiam à namorada coletiva, à pequena Tangerine-Girl, que já era uma instituição da base — só viu escárnio, familiaridade insolente... Decerto pensavam que ela era também uma dessas pequenas que namoram os marinheiros de passagem, quem quer que seja... decerto pensavam... Meu Deus do Céu!

Os moços, por causa da meia-escuridão, ou porque não cuidavam naquelas nuanças psicológicas, não atentaram na expressão de mágoa e susto que confrangia o rostinho redondo da amiguinha. E, quando um deles, curvando-se, lhe ofereceu o braço, viu-a com surpresa recuar, balbuciando timidamente:

— Desculpem... houve engano... um engano...

E os rapazes compreenderam ainda menos quando a viram fugir, a princípio lentamente, depois numa carreira cega. Nem desconfiaram que ela fugira a trancar-se no quarto e, mordendo o travesseiro, chorou as lágrimas mais amargas e mais quentes que tinha nos olhos.

Nunca mais a viram no laranjal; embora insistissem em atirar presentes, viam que eles ficavam no chão, esquecidos — ou às vezes eram apanhados pelos moleques do sítio.



Considerado um dos cem melhores contos brasileiros do século, o texto acima foi extraído do livro “O melhor da crônica brasileira”, José Olympio Editora – Rio de Janeiro, 1997, pág. 47.

Com ele homenageamos a querida escritora
Rachel de Queiroz, falecida aos 04 de novembro de 2003.


 
   
Os salteadores à solta na floresta urbana
 
Rachel de Queiróz
 
 
Quando jovem, a gente lendo a história dos séculos passados, a formação da sociedade européia, o aspecto que mais nos impressionava nas leituras era a insegurança da vida nessas eras antigas. O camponês na sua cabana, era, claro, o mais ameaçado. O seu senhor, os inimigos do senhor, os rufiões de passagem, os troços armados que até por simples desfastio poderiam destruir-lhe a morada e a planta, a ferro e fogo. O viajante nas estradas à mercê de salteadores, feras, intempéries. O fidalgo no seu castelo, que precisava morar dentro de uma fortaleza, permanentemente sob a ameaça de cerco ou ataque direto. O burguês nas cidades muradas, castelos em ponto maior, correndo os mesmos riscos, num caso e no outro. Nos palácios reais, nobres e cortesãos estavam sempre sob a ameaça do capricho do rei, do príncipe, do duque, da favorita de quem detivesse alguma fatia de poder. Até as rainhas podiam ser - e eram - de repente decapitadas, emparedadas. Em matéria de religião, a fé também podia ser um risco de vida. Que o digam os judeus, os cismáticos, os hereges, os incorfomistas, para os quais havia sempre uma sala de tortura ou uma fogueira preparadas. Sem falar nas guerras de religião, quando se podia passar toda uma cidade a fio de espada sob pretexto de defesa da fé.
Depois, o mundo foi se civilizando, o direito à segurança dos homens se afirmando, embora sujeito a alguns colapsos assustadores como a Revolução Francesa. Mas se o século XIX se colocava como uma era de segurança particular, o século XX seria disso um exemplo universal, se não fossem as duas Grandes Guerras, em 1918 e 1939. Mas até mesmo esses massacres em imensa escala obedeciam a regras, e quem não infringisse as regras da guerra tinha o escudo da lei do seu país a defendê-lo.
De repente, a nossa sociedade superatualizada, supersofisticada, superprotegida por uma tremenda organização de defesa ao individuo, essa sociedade se desmantelou. As megalópoles, habitadas por milhões que se contam às dezenas (México, Tóquio, São Paulo, Nova York etc.) tornaram-se subitamente ingovernáveis. O policeman inglês, simbolo do defensor dos direitos do cidadão, é hoje um pobrediabo que a multidão afasta aos safanões. A casa do cidadão deixou de ser seu castelo. Os transportes públicos são mais vulneráveis a ladrões e assassinos do que outrora as florestas infestadas de salteadores. O assaltante vem te buscar na tua cama, na cozinha, no escritório. No recesso do lar passou a ser uma metáfora cômica. As prodigiosas invenções da ciência não nos protegem em nada. O homem anda no espaço sideral com menos risco do que tomando um ônibus na sua rua. Não há habitante de qualquer cidade que não tenha a contar suas experiências pessoais de violência, assalto, tiros, facadas, sequestro. Como nos tempos de paris de João Sem MEdo, as nossas ruas noturnas recolhem em quantidade os presuntos desovados por assassinos desconhecidos, mas seguros na sua impunidade. Aliás, este é o lema de nosso tempo: só o crime se sente em segurança. O resto, nós, a gente, que se dane.
 
(AS terras ásperas. In: 96 crônicas escolhidas. São PAulo, Siciliano, 1993.)

 
   
 
 

 

  TELHA DE VIDRO

Rachel de Queiroz

Quando a moça da cidade chegou
veio morar na fazenda,
na casa velha...
Tão velha!
Quem fez aquela casa foi o bisavô...
Deram-lhe para dormir a camarinha,
uma alcova sem luzes, tão escura!
mergulhada na tristura
de sua treva e de sua única portinha...

A moça não disse nada,
mas mandou buscar na cidade
uma telha de vidro...
Queria que ficasse iluminada
sua camarinha sem claridade...

Agora,
o quarto onde ela mora
é o quarto mais alegre da fazenda,
tão claro que, ao meio dia, aparece uma
renda de arabesco de sol nos ladrilhos
vermelhos,
que — coitados — tão velhos
só hoje é que conhecem a luz doa dia...
A luz branca e fria
também se mete às vezes pelo clarão
da telha milagrosa...
Ou alguma estrela audaciosa
careteia
no espelho onde a moça se penteia.

Que linda camarinha! Era tão feia!
— Você me disse um dia
que sua vida era toda escuridão
cinzenta,
fria,
sem um luar, sem um clarão...
Por que você na experimenta?
A moça foi tão vem sucedida...
Ponha uma telha de vidro em sua vida!


Respuesta  Mensaje 3 de 3 en el tema 
De: QUIM TROVADOR Enviado: 01/12/2009 19:03
 
 
 
 
 

  

 

AMIGO VELHO


Pode haver nada mais confortável neste mundo
do que um amigo velho?
Não tem surpresa conosco,
mas também não espera de nós
o que não podemos dar.
Não se escandaliza com o que fazemos,
não se irrita, ou, se se irrita, é moderadamente...
Não precisa a gente lhe explicar nada,
o mecanismo de novos interesses
e até mesmo de novos amores,
porque o velho amigo
conhece todos os nossos mecanismos.
Mas, além dessa capacidade
de compreensão quase infinita,
se o amigo velho nos é
acima de tudo precioso
é porque preciosos também
somos nós para ele.


(Rachel de Queiroz)

**************************************


 
   
 
Rachel de Queiroz

Geometria dos Ventos
 
 

Eis que temos aqui a Poesia,
a  grande Poesia.
Que não oferece signos
nem linguagem específica, não respeita
sequer os limites do idioma. Ela flui, como  um rio.
como o sangue nas artérias,
tão espontnea que nem  se  sabe como foi escrita.
E ao mesmo tempo tão elaborada - 
feito uma flor na sua perfeição minuciosa,
um cristal que se  arranca da  terra
já dentro da geometria impecável 
da sua lapidação.
Onde se conta uma história, 
onde se vive um delírio; onde a condição humana exacerba,
até à fronteira da loucura, 
junto com Vincent e os seus girassóis de fogo,
à sombra  de Eva Braun, envolta no mistério ao
                                                  mesmo  tempo
fácil e insolúvel da sua tragédia.
Sim, é o encontro com a Poesia.

       
                     
(Poesia feita em homenagem ao poema 
"Geometrida dos Ventos" de Álvaro Pacheco) 
                    
                                                                   

 
   

Escrever

Você começa quando aprende a juntar as letras; faz frases engraçadinhas que seu avô acha gênio e mostra a todo mundo. Então você se convence de que é escritor. Essa convicção representa um compromisso, desde aquela idade remota, "já que é um escritor, é obrigado a escrever". Se os pais são medíocres intelectualmente, o exercício da suposta vocação torna-se fácil.

Mas quando os pais são ou literatos ou simples letrados muito mais lhe é exigido. Você tem que apresentar originalidade ao lado da qualidade. Isso quer dizer que você, desde esses inícios, já padece a maldição do escritor: ter estilo e idéias animando esse estilo. Em geral, os pais se embasbacam diante de qualquer manifestação intelectual precoce dos filhotes. Se eles não têm formação intelectual sofisticada, tudo bem. Qualquer paráfrase dos livros da escola já lhes parece excelente. Mas pais sofisticados é fogo. Não precisa nem que eles leiam os modernos, Drummond, Guimarães Rosa, Cecília Meireles, para só citar os mais ilustres e defuntos. Pai letrado quer que o filho faça pequenas frases, emita conceitos, tudo dentro da baixa qualidade que a sua literatice considera excelente. Portanto, para a qualidade da obra do filho, é melhor que os pais não tenham fumaças literárias e deixem que o menino seja o seu próprio juiz.

E, se ele tiver talento, pode ir longe, liberto dos padrões da mediocridade doméstica. Esse tipo de condenação não se pode fazer aos pais que realmente ou produzem ou pelo menos sabem apreciar uma boa peça literária. O filho, em geral, esconde deles as suas primícias, receoso do julgamento. E ele se faz censor de si mesmo, olhando com os olhos do pai aquilo que o pai não vê. Existe ainda outra maneira de ver estimulada a vocação literária dos jovens. É uma casa aberta onde todo mundo lê, o bom e o ruim, mas onde igualmente todo mundo tem direito à crítica, a falar o que pensa sobre a produção de pais, irmãos, tios e visitas íntimas, numa espécie de tribunal literário exercido à mesa de jantar. Lembro-me da casa de Aníbal Machado, ponto obrigatório dos principiantes ou recém-chegados que lá iam (levados por algum "freguês" semanal de Aníbal).

Sendo o dono da casa quem era, além de excelente escritor ele próprio, um animador generoso e um fino crítico de letras, a sua casa era uma espécie de fórum literário, referência obrigatória de quem pretendia se apresentar como escritor: "Ainda no domingo, na casa do Aníbal, ouvi o Vinícius dizer ao Conde que o modernismo morreu..." e se desmentindo a si próprio acabava mostrando o seu último poema - fina flor do modernismo, claro.

Mas voltando ao assunto da vocação literária: para escrever, tem que haver o dom da escrita, tal como para o cantor é preciso o dom da voz. Todos conhecemos pessoas inteligentes, até brilhantes na sua especialidade - medicina, arquitetura, engenharia, economia e, na verdade, por mais sabedores que sejam no seu ofício, não conseguem exprimir na palavra escrita essa sabedoria. Deus sempre é parco na concessão de dotes: os que acumulam são sempre contados. Por que as boas cantoras líricas geralmente têm tendência a engordar? E por que as de bela silhueta quase sempre só dispõem de um fio mal afinado de voz?

Os grandes oradores dificilmente são bons escritores. Parece que eles necessitam do estímulo de uma audiência cativa para suas frases de efeito. O que desencadeia o seu talento não é uma página de papel em branco, mas uma audiência presente. E, pensando bem, isso está certo: por que um único indivíduo pode receber juntos os dons da escrita e da eloqüência? Eu, por mim, sempre espero descobrir nos outros os dons ocultos pela modéstia ou timidez. Verdade que nem sempre tenho êxito; Nosso Senhor parece que só distribui tais dotes com a mão esquerda...

Raquel de Queiroz


   

Um caso obscuro

Rachel de Queiroz

 

 

Não quero fazer campanha contra quem acredita em espíritos, quem tem visões ou ouve "avisos". Espiritismo é religião tão respeitável quanto qualquer outra. Quero apenas prevenir meu amigo leitor contra alguma conversão apressada, porque o fato é que as forças da terra muitas vezes se misturam com as forças do céu.

O caso que passo a contar como exemplo, naturalmente que e verídico. Se fosse a cronista inventar um conto, teria que apurar muito mais o enredo e os personagens, dar-lhes veracidade e complexidade. E, aliás, como ficção ele não teria importncia nem sentido. O seu valor único e a autenticidade.

Certa professora de grupo, minha conhecida, tem uma empregada, senhora cinqüentona, de cara séria e jeito discreto, natural de Suruí, no Estado do Rio, de onde veio há poucos meses. E lá em Suruí deixou a mãe cega e enferma, da qual não tinha notícias desde que viera para a cidade. Analfabeta, não escrevia nem recebia cartas. Essa gente da roça não acredita muito em correspondência senão para notícias capitais.

Mas um belo dia acordou a empregada, que se chama Joana, chorando, abaladíssima, queixando-se de estranhas visões. Dizia que passara toda a noite acordada; mas não pudera chamar ninguém porque com o medo ficara sem fala. Sentira uns assopros no ouvido, depois lhe sacudiam a cama, como se fosse um terremoto. Por fim vira a mãe, a velhinha cega, estirada num caixão, metida numa mortalha preta. Toda a manhã a mulher chorou e lamentou-se. A patroa, penalizada, ofereceu-se para mandar um telegrama pedindo noticias. Joana porém tinha medo de telegramas:

— E mais medo tem minha mãe. Chegando telegrama lá, se ela ainda estiver viva morre só de susto.

Estavam nisso as coisas quando ao meio-dia aparece na casa da professora um filho homem de Joana, que também reside na cidade. Trazia na mão um envelope fechado, sem carimbo nem selo. Era uma carta vinda em mão própria da sua terra, explicou o moço. E como ele também não sabia ler, pediram à patroa que abrisse e lesse a missiva — aliás curta e comovente.

"Minha irmã como vai esta tem por fim de lhe dizer que a nossa mãe está às portas da morte já de vela na mão. Joana se apresse sinão não vê mais nossa mãe adeus do seu irmão Basílio."

Chegando assim aquela carta, após a série de visões noturnas, era impressionante. E a própria patroa a abrira, excluindo-se assim a possibilidade de conhecimento prévio do conteúdo. Era uma dessas bofetadas que o mundo dos invisíveis atira aos pobres humanos, deixando-os cheios de susto e dúvida. Com seus próprios ouvidos escutara a patroa pela manhã a história do assopro, das sacudidelas na cama, da figura amortalhada no caixão. Com suas mãos recebera a carta, com seus olhos lera o endereço tremido e oblíquo, e depois a lacônica má nova. Naturalmente deu imediata licença a Joana para a viagem. Grande falta lhe faria em casa, mas quem pode pensar em impedir um filho de despedir-se da mãe, à hora da morte? E deu-lhe mais dinheiro, deu-lhe um vestido preto quase novo, consultou o horário dos trens, forneceu provisões para a viagem. Não era só caridade de burguesa progressista que a animava, mas principalmente o interesse do profano por uma criatura feita instrumento das forças do Incognoscível. E Joana partiu. A patroa ficou contando a história aos conhecidos; contou por boca e por telefone. Chegou a contar por carta. Não a repetiu às crianças no grupo só de medo de assustá-las com essas coisas misteriosas que ficam entre o céu e a terra. O caso era tão simples, tão líquido: resumia-se apenas a fatos dos quais ela própria era testemunha. E fazia cálculos: a carta deve ter partido de Suruí na antevéspera, de modo que a velha bem podia estar mesmo morrendo na hora das visões noturnas de Joana. Ficou a esperar impaciente a volta da viajante. Sim, porque Joana pediu que o seu lugar fosse conservado, que, consumado tudo, voltaria. "Nem espero a semana de nojo, patroa. Venho logo depois do enterro."

E, falando em enterro, rompeu em pranto.

Passados oito dias, chegou Joana, mas ainda com a saia estampadinha de encarnado com a qual partira, em vez do vestido de seda preta que lhe dera a patroa, prevendo o luto. Sim, a velha continuava viva. Contou que a mãe estivera de fato muito ruim, vai-não-vai, mas de repente melhorara. Por isso Joana se demorara mais, até que a melhora parecesse segura. E voltou a trabalhar como dantes.

Aquela quase ressurreição desorientou a patroa. Afinal, a velha aparecera de mortalha, e dera o assopro, e sacudira a cama... Mas consultando sobre o assunto os amigos espíritas, eles lhe explicaram que era assim mesmo, e tanto o espírito encarnado como o desencarnado poderia mandar "avisos". Falaram mesmo em corpo astral, e a professora se impressionou muito.

Nesse estado moral ficou, meio abalada, meio crente, até que um dia sucedeu dessas incríveis, dessas raras coincidências que só acontecem na vida real e nos romances de fancaria: recebeu a visita de uma amiga a quem também contara a história da visão. A amiga vinha de propósito lhe narrar a tal coincidência inaudita. Imagine-se que o filho de Joana por acaso fora trabalhar em sua casa, consertando-lhe o jardim. Lá estava fazia uma quinzena quando inexplicavelmente desapareceu por uma semana. Passados os oito dias, voltou, e alegou motivo de moléstia para a ausência.

No jardim, revolvendo os canteiros, podando o fícus, estabeleceu-se entre jardineiro e patroa esse entendimento normal entre companheiros de trabalho, Ela explicava como queria o serviço, ele dizia que na casa do Dr. Fulano fazia assim e assim, que enxerto de mergulha só é bom com lua tal etc. Afinal, ela lhe perguntou que doença fora a sua, dias antes. O rapaz, que enterrava umas batatas de dália, ficou encabulado. Depois, teve assim como um assomo de consciência, e explicou:

— Patroa, falar a verdade é preciso. Não estive doente não. Mas o caso é que minha mãe meteu na idéia ir em casa, com vontade de assistir umas ladainhas que rezam lá no mês de agosto. Como estava num emprego bom, teve medo que a dona-de-casa se zangasse com uma viagem assim à-toa e não guardasse o lugar para ela, de volta. Então se combinou comigo, só por causa de não fazer a moça se zangar. Pegou a ter uns sonhos com a minha avó, enfiava os olhos na fumaça do fogo para sair chorando. Ai eu mandei um companheiro fazer uma carta chamando, dizendo que a velha estava morrendo, lá no Suruí. A patroa consentiu logo, naturalmente. Tive que fazer companhia a minha mãe, assistimos as ladainhas e agora estamos os dois de volta à nossa obrigação...

A moça ficou espantadíssima:

— Mas, criatura, como é que sua mãe teve a coragem de chamar assim morte para cima de sua avó? Vocês não tiveram medo do agouro?

— Qual, dona! Uma velha daquela, cega, doente, em cima duma cama, dando trabalho e consumição a todo mundo, chamar a morte para ela não é agouro; chamar a morte para ela é mais uma obra de caridade. E dai, agouro que fosse, vê-se bem que não pegou...




O texto acima foi extraído do livro "
Quatro Vozes", Distribuidora   Record - Rio de Janeiro, 1998, pág. 35.


 
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