|
|
II
Canção
A instabilidade da Fortuna,
os enganos suaves de Amor cego,
(suaves, se duraram longamente),
direi, por dar à vida algum sossego;
que, pois a grave pena me importuna,
importune meu canto a toda a gente.
E se o passado bem co mal presente
me endurece a voz no peito frio,
o grande desvario
dará de minha pena sinal certo,
que um erro em tantos erros é concerto.
E, pois nesta verdade me confio
(se verdade se achar no mal que digo),
saiba o mundo de Amor o desconcerto,
que já co a Razão se fez amigo,
só por não deixar culpa sem castigo.
Já Amor fez leis, sem ter comigo algüa;
já se tornou, de cego, arrazoado,
só por usar comigo sem-razões.
E, se em algüa cousa o tenho errado,
com siso, grande dor não vi nenhüa,
nem ele deu sem erros afeições.
Mas, por usar de suas isenções,
buscou fingidas causas por matar-me;
que, para derrubar-me
no abismo infernal de meu tormento,
não foi soberbo nunca o pensamento,
nem pretende mais alto alevantar-me
daquilo que ele quis; e se ele ordena
que eu pague seu ousado atrevimento,
saiba que o mesmo Amor que me condena
me fez cair na culpa e mais na pena.
Os olhos que eu adoro, aquele dia
que desceram ao baixo pensamento,
nalma os aposentei suavemente;
e pretendendo mais, como avarento,
o coração lhe dei por iguaria,
que a meu mandado tinha obediente.
Porém como ante si lhe foi presente
que entenderam o fim de meu desejo,
ou por outro despejo, que a língua
descobriu por desvario,
de sede morto estou posto num rio,
onde de meu serviço o fruto vejo;
mas logo se alça se a colhê-lo venho,
e foge-me a água, se beber porfio;
assi que em fome e sede me mantenho:
não tem Tntalo a pena que eu sustenho.
Despois que aquela em quem minhalma vive
quis alcançar o baixo atrevimento,
debaixo deste engano a alcancei:
a nuvem do contino pensamento
ma afigurou nos braços, e assi a tive,
sonhando o que acordado desejei.
Porque a meu desejo me gabei
de alcançar um bem de tanto preço,
além do que padeço,
atado em üa roda estou penando,
que em mil mudanças me anda rodeando
onde, se a algum bem subo, logo deço,
e assi ganho e perco a confiança;
e assi me tem atado ua vingança,
como Ixião, tão firme na mudança.
Quando a vista suave e inumana
meu humano desejo, de atrevido,
cometeu, sem saber o que fazia
(que de sua beleza foi nacido)
o cego Moço, que, co a seta insana,
o pecado vingou desta ousadia),
e afora este mal que eu merecia,
me deu outra maneira de tormento:
que nunca o pensamento,
que sempre voa düa a outra parte,
destas entranhas tristes bem se farte,
imaginando sobre o famulento,
quanto mais come, mais está crecendo,
porque de atormentar-me não se aparte;
assi que para a pena estou vivendo,
sou outro novo Ticio, e não me entendo.
De vontades alheias, que roubava,
e que enganosamente recolhia
em meu fingido peito, me mantinha.
De maneira o engano lhe fingia,
que despois que a meu mando as sojugava,
com amor as matava, que eu não tinha.
Porém, logo o castigo que convinha
o vingativo Amor me fez sentir,
fazendo-me subir
ao monte da aspereza que em vós vejo,
co pesado penedo do desejo,
que do cume do bem me vai cair;
torno a subi-lo ao desejado assento,
torna a cair-me; embalde, enfim, pelejo.
Não te espantes, Sísifo, deste alento,
que as costas o subi do sofrimento.
Destarte o sumo bem se me oferece
ao faminto desejo, porque sinta
a perda de perdê-lo mais penosa.
Como o avaro a quem o sonho pinta
achar tesouro grande, onde enriquece
e farta sua sede cobiçosa.
e acordando com fúria pressurosa
vai cavar o lugar onde sonhava,
mas tudo o que buscava
lhe converte em carvão a desventura;
ali sua cobiça mais se apura,
por lhe faltar aquilo que esperava:
destarte Amor me faz perder o siso.
Porque aqueles que estão na noite escura,
nunca sentirão tanto o triste abiso,
se ignorarem o bem do Paraíso.
Canção, nô mais, que já não sei que digo;
mas porque a dor me seja menos forte,
diga o pregão a causa desta morte.
| | | | | | | |
|
|
Primer
Anterior
2 a 14 de 14
Siguiente
Último
|
|
|
|
Alma Minha Gentil, Que Te Partiste
Alma minha gentil, que te partiste tão cedo desta vida descontente, repousa lá no Céu eternamente, e viva eu cá na terra sempre triste.
Se lá no assento etéreo, onde subiste, memória desta vida se consente, não te esqueças daquele amor ardente que já nos olhos meus tão puro viste.
E se vires que pode merecerte alguma cousa a dor que me ficou da mágoa, sem remédio, de perderte,
roga a Deus, que teus anos encurtou, que tão cedo de cá me leve a verte, quão cedo de meus olhos te levou.
(Luis Vaz de Camões)
| | | | | | | | | | |
|
|
|
Fermosos olhos ...
Fermosos olhos que na idade nossa mostrais do Céu certissimos sinais, se quereis conhecer quanto possais, olhai me a mim, que sou feitura vossa.
Vereis que de viver me desapossa aquele riso com que a vida dais; vereis como de Amor não quero mais, por mais que o tempo corra e o dano possa.
E se dentro nestalma ver quiserdes, como num claro espelho, ali vereis também a vossa, angélica e serena.
Mas eu cuido que só por não me verdes, ver vos em mim, Senhora, não quereis: tanto gosto levais de minha pena!
Luis de Camões |
|
|
|
Dai-me uma lei, Senhora
Dai-me uma lei Senhora, de querer-vos,
por que a guarde, sob pena de enojar-vos;
pois a fé que me obriga a tanto amar-vos
fará que fique em lei de obedecer-vos.
Tudo me defendei, senão só er-vos
e dentro na minha alma contemplar-vos;
que, se assim não chegar a contentar-vos,
ao menos nunca chegue a aborrecer-vos.
E, se essa condição cruel e esquiva
que me deis lei de vida não consente,
dai-ma, Senhora, já: seja de morte.
Se nem essa me dais, é bem que viva,
sem saber como vivo, tristemente;
mas contente estarei com minha sorte.
(Luis Vaz de Camões)
| | | |
|
|
Verdes são os campos,
De cor de limão:
Assim são os olhos
Do meu coração.
Campo, que te estendes
Com verdura bela;
Ovelhas, que nela
Vosso pasto tendes,
De ervas vos mantendes
Que traz o Verão,
E eu das lembranças
Do meu coração.
Gado que pasteis
Com contentamento,
Vosso mantimento
Não no entendereis
Isso que comeis
Não são ervas, não:
São graças dos olhos
Do meu coração.
( Luis de Camões )
|
| | | | | |
|
|
Luís Vaz de Camões
O POETA SIMÓNIDES, FALANDO
O Poeta Simónides, falando co capitão Temístocles, um dia, em cousas de ciência praticando,
üa arte singular lhe prometia, que então compunha, com que lhe ensinasse a se lembrar de tudo o que fazia;
onde tão sutis regras lhe mostrasse que nunca lhe passasse da memória em nenhum tempo as cousas que passasse.
Bem merecia, certo, fama e glória quem dava regra contra o esquecimento que enterra em si qualquer antiga história.
Mas o capitão claro, cujo intento bem diferente estava, porque havia as passadas lembranças por tormento,
«o ilustre Simónides – dizia – pois tanto em teu engenho te confias que mostras à memória nova via?
Se me desses üa arte que em meus dias me não lembrasse nada do passado, oh! quanto milhor obra me farias!»
Se este excelente dito ponderado fosse por quem se visse estar ausente, em longas esperanças degradado,
oh! como bradaria justamente: «Simónides, inventa novas artes; não meças o passado co presente!»
Que, se e forçado andar por várias partes buscando e vida algum descanso honesto, que tu, Fortuna injusta, mal repartes;
e se o duro trabalho e manifesto que, por grave que seja, há-de passar-se com animoso esprito e ledo gesto;
de que serve às pessoas alembrar-se do que se passou já, pois tudo passa, senão de entristecer-se e magoar-se?
Se noutro corpo üa alma se traspassa, – não, como quis Pitágoras, na morte mas, como manda Amor, na vida escassa –;
e se este Amor no mundo está de sorte que na virtude só dum lindo objecto tem um corpo sem alma, vivo e forte;
onde este objecto falta, que é defecto tamanho para a vida, que já nela me está chamando à pena a dura Alecto;
porque me não criara minha estrela selvático no mundo, e habitante na dura Cítia, ou na aspereza dela?
Ou no Cáucaso horrendo, fraco infante, criado ao peito dalgüa tigre hircana? Homem fora formado de diamante,
porque a cerviz ferina e inumana não sometera ao jugo e dura lei daquele que de vida quando engana.
Ou, em pago das águas que estilei, as que do mar passei foram de Lete, para que me esquecera o que passei.
Que o bem que a esperança vã promete, ou a morte o estorva, ou a mudança, que e mal que üa alma em lágrimas derrete.
Já, Senhor, cairá como a lembrança, no mal, do bem passado é triste e dura, pois nace aonde morre a esperança.
E se quiser saber como se apura nüa alma saudosa, não se enfade de ler tão longa e mísera escritura.
Soltava Eolo a rédea e liberdade ao manso Favónio brandamente, e eu já tinha solta a saudade.
Neptuno tinha posto o seu tridente; a proa a branca escuma dividia, co a gente marítima contente.
O coro das Nereidas nos seguia; os ventos, namorada Galateia consigo, sossegados, os movia.
Das argênteas conchinhas, Panopeia andava pelo mar fazendo molhe, Melaneto, Dinamene, com Ligeia.
Eu, trazendo lembranças por antolhos trazia os olhos na água sossegada, e a água sem sossego nos meus olhos.
A bem-aventurança já passada diante de mim tinha tão presente como se não mudasse o tempo nada.
E com o gesto imoto e descontente cum suspiro profundo e mal ouvido por não mostrar meu mal a toda a gente,
dizia: ó claras Ninfas! Se o sentido em puro amor tivestes, e inda agora da memória o não tendes esquecido;
se, porventura, fordes algüa hora aonde entra o grão Tejo a dar tributo a Tétis, que vos tendes por Senhora;
ou por verdes o prado verde enxuto, ou por colherdes ouro rutilante, das tágicas areias rico fruto;
nelas em verso heróico e elegante, escrevei cüa concha o que em mim vistes: pode ser que algum peito se quebrante.
E contando de mim memórias tristes, os pastores do Tejo, que me ouviam, ouçam de vós as mágoas que me ouvistes.
Elas, que já no gesto me entendiam nos meneios das ondas me mostravam que em quanto lhes pedia consentiam.
Estas lembranças, que me acompanhavam pola tranquilidade da bonança, nem na tormenta grave me deixavam.
Porque, chegado ao Cabo da Esperança, começo da saudade que renova, lembrando a longa e áspera mudança;
debaixo estando já da estrela nova, que no novo hemisfério resplandece, dando do segundo axe certa prova;
eis a noite com nuvens escurece, do ar supitamente foge o dia, e o largo oceano se embravece.
A máquina do mundo parecia que em tormenta se vinha desfazendo, em serras todo o mar se convertia.
Lutando, Bóreas fero e Noto horrendo sonoras tempestades levantavam, das naus as velas côncavas rompendo.
As cordas, co ruído, assoviavam; os marinheiros, já, desesperados, com gritos para o Céu o ar coalhavam.
Os raios por Vulcano fabricados vibrava o fero e áspero Tonante, tremendo os Pólos ambos, de assombrados!
Ali Amor mostrando-se possante e que por nenhum modo não fugia, – mas quanto mais trabalho, mais constante –
vendo a morte diante em mim, dizia: «Se algüa hora, Senhora, vos lembrasse, nada do que passei me lembraria».
Enfim, nunca houve cousa que mudasse o firme Amor do intrínseco daquele em cujo peito üa vez de siso entrasse.
üa cousa, Senhor, por certo assele: que nunca Amor se afina nem se apura, enquanto está presente a causa dele.
Destarte me chegou minha ventura a esta desejada e longa terra, de todo o pobre honrado sepultura.
Vi quanta vaidade em nós se encerra, e dos próprios quão pouca; contra quem foi logo necessário termos guerra:
que üa ilha que o rei de Porcá tem, que o rei da Pimenta lhe tomara, fomos tomar-lha, e sucedeu-nos bem.
Com üa armada grossa, que ajuntara o viso-rei de Goa, nos partimos com toda a gente de armas que se achara,
e com pouco trabalho destruímos a gente no curvo arco exercitada; com mortes, com incêndios, os punimos.
Era a ilha com águas alagada, de modo que se andava em almadias; enfim, outra Veneza trasladada.
Nela nos detivemos sós dous dias, que foram para alguns os derradeiros, que passaram de Estige as águas frias.
Que estes são os remédios verdadeiros que para a vida estão aparelhados aos que a querem ter por cavaleiros.
Oh! lavradores, bem-aventuradas se conhecessem seu contentamento! Como vivem no campo sossegados!
Dá-lhes a justa terra o mantimento, dá-lhes a fonte clara a água pura, mungem suas ovelhas cento a cento.
Não vêem o mar irado, a noite escura, por ir buscar a pedra do Oriente; não temem o furor da guerra dura.
Vive um com suas árvores contente, sem lhe quebrar o sono sossegado o cuidado do ouro reluzente.
Se lhe falta o vestido perfumado, e da fermosa cor assíria tinto, e dos torçais atálicos lavrado;
se não têm as delícias de Corinto, e se de Pário os mármores lhe faltam, o piropo, a esmeralda, e o jacinto;
se suas casas de ouro não se esmaltam, esmalta-se-lhe o campo de mil flores, onde os cabritos seus, comendo, saltam.
Ali amostra o campo várias cores, vêem-se os ramos pender co fruto ameno, ali se afina o campo dos pastores;
ali cantara Títiro e Sileno. Enfim, por estas partes caminhou a sã Justiça para e Céu sereno.
Ditoso seja aquele que alcançou poder viver na doce companhia das mansas ovelhinhas que criou!
Este, bem facilmente alcançaria as causas naturais de toda a cousa: como se gera a chuva e neve fria;
os trabalhos do Sol, que não repousa; e porque nos dá a Lüa a luz alheia, se tolher-nos de Febo os raios ousa;
e como tão depressa o Céu rodeia; e como um só os outros traz consigo; e se é benina ou dura Citereia.
Bem mal pode entender isto que digo quem há-de andar seguindo o fero Marte, que traz os olhos sempre em seu perigo.
Porém seja, senhor, de qualquer arte, que, posto que a Fortuna possa tanto que tão longe de todo o bem me aparte,
não poderá apartar meu duro canto desta obrigação sua, enquanto a morte me não entrega ao duro Radamanto, se para tristes há tão leda sorte.
| | | | | | |
| | | | | | | | | | |
|
|
Luís de Camões
Com o Tempo o Prado Seco Reverdece
Com o tempo o prado seco reverdece, Com o tempo cai a folha ao bosque umbroso, Com o tempo para o rio caudaloso, Com o tempo o campo pobre se enriquece,
Com o tempo um louro morre, outro floresce, Com o tempo um é sereno, outro invernoso, Com o tempo foge o mal duro e penoso, Com o tempo torna o bem já quando esquece,
Com o tempo faz mudança a sorte avara, Com o tempo se aniquila um grande estado, Com o tempo torna a ser mais eminente.
Com o tempo tudo anda, e tudo pára, Mas só aquele tempo que é passado Com o tempo se não faz tempo presente.
| | | | | | |
|
|
|
VI
Camões
Canção
Com força desusada
aquenta o fogo eterno
üa ilha lá nas partes do Oriente,
de estranhos habitada,
aonde o duro Inverno
os campos reverdece alegremente.
A lusitana gente
por armas sanguinosas,
tem dela senhorio.
Cercada está dum rio
de marítimas águas saudosas;
das ervas que aqui nascem,
os gados juntamente e os olhos pascem.
Aqui minha ventura
quis que üa grã parte
da vida, que não tinha, se passasse,
para que a sepultura
nas mãos do fero Marte
de sangue e de lembranças matizasse.
Se Amor determinasse
que, a troco desta vida,
de mim qualquer memória
ficasse, como história
que de uns fermosos olhos fosse lida,
a vida e alegria
por tão doce memória trocaria.
Mas este fingimento,
por minha dura sorte,
com falsas esperanças me convida.
Não cuide o pensamento
que pode achar na morte
o que não pôde achar tão longa vida.
Está já tão perdida
a minha confiança
que, de desesperado
em ver meu triste estado,
também da morte perco a esperança.
Mas oh! que se algum dia
desesperar pudesse, viveria.
De quanto tenho visto
já gora não mespanto,
que até desesperar se me defende.
Outrem foi causa disto,
que eu nunca pude tanto
que causasse este fogo que me encende.
Se cuidam que me ofende
temor de esquecimento,
oxalá meu perigo
me fora tão amigo
que algum temor deixara ao pensamento!
Quem viu tamanho enleio
que houvesse ai esperança sem receio?
Quem tem que perder possa
se pode recear.
Mas triste quem não pode já perder!
Senhora, a culpa é vossa,
que para me matar
bastará ühora só de vos não ver.
Puseste-me em poder
de falsas esperanças;
e, do que mais me espanto:
que nunca vali tanto
que vivesse também com esquivanças.
Valia tão pequena
não pode merecer tão doce pena.
Houve-se Amor comigo
tão brando e pouco irado,
quanto agora em meus males se conhece;
que não há mor castigo
para quem tem errado q
ue negar-lhe o castigo que merece.
E bem como acontece
que assi como ao doente
da cura despedido,
o médico sabido
tudo quanto deseja lhe consente,
assi me consentia
esperança, desejo e ousadia.
E agora venho a dar
conta do bem passado
a esta triste vida e longa ausência.
Quem pode imaginar
que pode haver pecado
que mereça tão grave penitência?
Olhai que é consciência,
por tão pequeno erro,
Senhora, tanta pena!
Não vedes que é onzena?
Mas se tão longo e mísero desterro
vos dá contentamento,
nunca se acabe nele meu tormento.
Rio fermoso e claro,
e vós, ó arvoredos,
que os justos vencedores coroais,
e ao cultor avaro,
continuamente ledos,
dum tronco só diversos frutos dais;
assi nunca sintais
do tempo injúria algüa,
que em vós achem abrigo
as mágoas que aqui digo,
enquanto der o Sol virtude à Lüa;
porque de gente em gente
saibam que já não mata a vida ausente.
Canção, neste desterro viverás,
Voz nua e descoberta,
até que o tempo em Eco te converta.
| | |
|
|
V
Canção
Se este meu pensamento,
como é doce e suave,
de alma pudesse vir gritando fora,
mostrando seu tormento
cruel, e grave,
diante de vós só, minha Senhora:
pudera ser que agora
o vosso peito duro
tornara manso e brando.
E eu que sempre ando
pássaro solitário, humilde, escuro,
tornado um cisne puro,
brando e sonoro pelo ar voando,
com canto manifesto
pintara meu tormento e vosso gesto.
Pintara os olhos belos
que trazem nas mininas
o Minino que os seus neles cegou;
e os dourados cabelos
em tranças douro finas
a quem o Sol seus raios abaixou;
a testa que ordenou
atura tão formosa;
o bem proporcionado
nariz, lindo, afilado,
que a cada parte tem a fresca rosa;
a boca graciosa,
que querê-la louvar é escusado;
enfim, é um tesouro:
os dentes, perlas; as palavras, ouro.
Vira-se claramente,
ó Dama delicada,
que em vós se esmerou mais a Natureza;
e eu, de gente em gente,
trouxera trasladada
em meu tormento vossa gentileza.
Somente a aspereza
de vossa condição,
Senhora, não dissera,
porque se não soubera
que em vós podia haver algum senão.
E se alguém, com razão,
—Porque morres? dissera, respondera:
—Mouro porque é tão bela
que inda não sou para morrer por ela.
E se pola ventura,
Dama, vos ofendesse,
escrevendo de vós o que não sento,
e vossa fermosura
tão baixo não descesse
que a alcançasse um baixo entendimento,
seria o fundamento
daquilo que cantasse todo de puro amor,
porque vosso louvor
em figura de mágoas se mostrasse.
E onde se julgasse a causa pelo efeito,
minha dor diria ali sem medo:
quem me sentir, verá de quem procedo.
Então amostraria
os olhos saudosos,
o suspirar que a alma traz consigo;
a fingida alegria,
os passos vagarosos,
o falar, o esquecer-me do que digo;
um pelejar comigo,
e logo desculpar-me;
um recear, ousando;
andar meu bem buscando,
e de poder achá-lo acovardar-me;
enfim, averiguar-me
que o fim de tudo quanto estou falando
são lágrimas e amores;
são vossas isenções e minhas dores.
Mas quem terá, Senhora,
palavras com que iguale
com vossa fermosura minha pena;
que, em doce voz, de fora
aquela glória fale
que dentro na minhalma Amor ordena?
Não pode tão pequena
força de engenho humano
com carga tão pesada,
se não for ajudada
dum piedoso olhar, dum doce engano;
que, fazendo-me o dano
tão deleitoso, e a dor tão moderada,
que, enfim, se convertesse
nos gostos dos louvores que escrevesse.
Canção, não digas mais; e se teus versos
à pena vêm pequenos,
não queiram de ti mais, que dirás menos.
Webset Copyright ©2005 SuizaBella All Rights Reserved | | | | | | | | | | | | | | | |
|
|
|
|
|
|
|
XIII
Elegia
O sulmonense Ovídio, desterrado
na aspereza do Ponto, imaginando
ver-se de seus parentes apartado;
sua cara mulher desamparando,
seus doces filhos, seu contentamento,
de sua pátria os olhos apartando;
não podendo encobrir o sentimento,
aos montes e às águas se queixava
de seu escuro e triste nacimento.
O curso das estrelas contemplava,
e como por sua ordem discorria
o céu, o ar e a terra adonde estava.
Os peixes pelo mar nadando via,
as feras pelo monte, procedendo
como seu natural lhes permitia.
De suas fontes via estar nascendo
os saudosos rios de cristal,
a sua natureza obedecendo.
Assi só, de seu próprio natural
apartado, se via em terra estranha,
a cuja triste dor não acha igual.
Só sua doce Musa o acompanha,
nos versas saudosos que escrevia,
e lágrimas com que ali o campo banha.
Destarte me afigura a fantasia a vida
com que vivo, desterrado do bem
que noutro tempo possuia.
Ali contemplo o gosto já passado,
que nunca passará pola memória
de quem o tem na mente debuxado.
Ali vejo a caduca e débil glória
desenganar meu erro, co a mudança
que faz a frágil vida transitória.
Ali me representa esta lembrança
quão pouca culpa tenho; e me entristece
ver sem razão a pena que me alcança.
Que a pena que com causa se padece,
a causa tira o sentimento dela;
mas muito dói a que se não merece.
Quando a roxa manhã, formosa
e bela, abre as portas ao sol, e cai o orvalho,
e torna a seus queixumes filomela;
este cuidado que co sono atalho
em sonhos me parece; que o que a gente
para descanso tem, me dá trabalho.
E despois de acordado, cegamente
(ou, por milhor dizer, desacordado,
que pouco acordo tem um descontente)
dali me vou com passo carregado,
a um outeiro erguido, e ali me assento,
soltando a rédea toda a meu cuidado.
Despois de farto já de meu tormento,
dali estendo os olhos saudosos
à parte aonde tenho o pensamento.
Não vejo senão montes pedregosos;
e os campos sem graça e secos vejo
que já floridos vira e graciosos.
Vejo o puro, suave e brando Tejo,
com as côncovas barcas, que, nadando,
vão pondo em doce efeito seu desejo.
as co brando vento navegando, o
utras cos leves remos, brandamente
as cristalinas águas apartando.
Dali falo co a água, que não sente
com cujo sentimento a alma sai
em lágrimas desfeita claramente.
Ó fugitivas ondas, esperai!
que, pois me não levais em companhia
ao menos estas lágrimas levai,
até que venha aquele alegre dia
que eu vá onde vós is, contente e ledo.
Mas tanto tempo quem o passaria?
Não pode tanto bem chegar tão cedo,
porque primeiro a vida acabará
que se acabe tão áspero degredo.
Mas esta triste morte que virá,
se em tão contrário estado me acabasse,
a alma impaciente adonde irá?
Que, se às portas tartáreas chegasse,
temo que tanto mal pola memória
nem ao passar de Lete lhe passasse.
Que, se a Tntalo e Tício for notória
a pena com que vai que a atormenta,
a pena que lá tem terão por glória.
Esta imaginação me acrescenta
mil mágoas no sentido, porque a vida
de imaginações tristes se sustenta.
Que, pois de todo vive consumido,
porque o mal que possui se resuma,
imagina na glória possuida,
até que a noite eterna me consuma,
ou veja aquele dia desejado,
em que Fortuna faça o que costuma;
—se nela há i mudar um triste estado.
| | | | | | | | | | | | |
|
|
VIII
Canção
Tomei a triste pena
já de desesperado
de vos lembrar as muitas que padeço,
com ver que me condena
a ficar eu culpado
o mal que me tratais e o que mereço.
Confesso que conheço
que, em parte, a causa dei
[a] o mal em que me vejo,
pois sempre meu desejo
a tão largas promessas entreguei;
mas não tive suspeita
que seguísseis tenção tão imperfeita.
Se em vosso esquecimento
tão envolto estou
como os sinais demonstram, que mostrais;
vivo neste tormento,
lembranças mais não dou
que as de razão tomar queirais:
olhai que me tratais
assi de dia em dia
com vossas esquivanças;
e as vossas esperanças,
de que, vãmente, eu me enriquecia,
renovam a memória;
pois com tê-la de vós, só tenho glória.
E se isto conhecêsseis
ser verdade pura
como ouro de Arábia reluzente,
inda que não quisésseis,
a condição tão dura
mudáreis noutra muito diferente.
E eu, como inocente
que estou neste caso,
isto em mãos pusera
de quem sentença dera
que ficasse o direito justo e raso,
se não arreceara
que a vós por mim, e a mim por vós matara.
Em vós escrita vi
vossa grande dureza,
e nalma escrita está que de vós vive;
não que acabasse ali
sua grande firmeza
o triste desengano que então tive;
porque antes que a dor prive
de todos meus sentidos,
ao grande tormento
acode o entendimento
com dous fortes soldados, guarnecidos
de rica pedraria,
que ficam sendo minha luz e guia.
Destes acompanhado,
estou posto sem medo
a tudo o que o fatal destino ordene;
pode ser que, cansado,
ou seja tarde, ou cedo,
com pena de penar-me, me despene.
E quando me condene
(que isto é o que espero)
inda a maiores dores,
perdidos os temores,
por mais que venha, não direi: não quero.
Contudo estou tão forte
que nem me mudará a mesma morte.
Canção, se já não queres
ver tanta crueldade,
lá vás onde verás minha verdade.
| | | | | | | | | | | | |
|
|
|
|
|
CANçõES E ELEGIAS
Luís de Camões
I
Canção
Fermosa e gentil Dama, quando vejo
a testa de ouro e neve, o lindo aspeito,
a boca graciosa, o riso honesto,
o colo de cristal, o branco peito,
de meu não quero mais que meu desejo,
nem mais de vós que ver tão lindo gesto.
Ali me manifesto
por vosso a Deus e ao mundo; ali me inflamo
nas lágrimas que choro,
e de mim, que vos amo,
em ver que soube amar-vos, me namoro;
e fico por mim só perdido, de arte
que hei ciúmes de mim por vossa parte.
Se porventura vivo descontente
por fraqueza desprito, padecendo
a doce pena que entender não sei,
fujo de mim e acolho-me, correndo,
à vossa vista; e fico tão contente
que zombo dos tormentos que passei.
De quem me queixarei
se vós me dais a vida deste jeito
nos males que padeço,
senão de meu sujeito,
que não cabe com bem de tanto preço?
Mas inda isso de mim cuidar não posso,
de estar muito soberbo com ser vosso.
Se, por algum acerto, Amor vos erra
por parte do desejo, cometendo
algum nefando e torpe desatino,
se ainda mais que ver, enfim, pretendo,
fraquezas são do corpo, que é de terra,
mas não do pensamento, que é divino.
Se tão alto imagino que de vista
me perco (peco nisto),
desculpa-me o que vejo;
que se, enfim, resisto
contra tão atrevido e vão desejo,
faço-me forte em vossa vista pura,
e armo-me de vossa fermosura.
Das delicadas sobrancelhas pretas
os arcos com que fere, Amor tomou,
e fez a linda corda dos cabelos;
e porque de vós tudo lhe quadrou,
dos raios desses olhos fez as setas
com que fere quem alça os seus, a vê-los.
Olhos que são tão belos
dão armas de vantagem ao Amor,
com que as almas destrui;
porém, se é grande a dor,
co a alteza do mal a restitui;
e as armas com que mata são de sorte
que ainda lhe ficais devendo a morte.
Lágrimas e suspiros, pensamentos,
quem deles se queixar, fermosa Dama,
mimoso está do mal que por vós sente.
Que maior bem deseja quem vos ama
que estar desabafando seus tormentos,
chorando, imaginando docomente?
Quem vive descontente,
não há-de dar alívio a seu desgosto,
porque se lhe agradeça;
mas com alegre rosto
sofra seus males, para que os mereça;
que quem do mal se queixa, que padece,
fá-lo porque esta glória não conhece.
De modo que, se cai o pensamento
em algüa fraqueza, de contente,
é porque este segredo não conheço;
assi que com razões, não tão somente
desculpo ao Amor do meu tormento,
mas ainda a culpa sua lhe agradeço.
Por esta fé mereço
a graça, que esses olhos acompanha,
o bem do doce riso;
mas, porém, não se ganha
cum paraíso outro paraíso.
E assi, de enleada, a esperança
se satisfaz co bem que não alcança.
Se com razões escuso meu remédio,
sabe, Canção, que porque não vejo,
engano com palavras o desejo.
| | | | | | | | | | | |
|
|
|
Sete anos de pastor
Sete anos de pastor Jacob servia Labão, pai de Raquel, serrana bela; mas não servia o pai, servia a ela, e a ela só por prémio pretendia.
Os dias, na esperança de um só dia, passava, contentando-se com vê-la; porém o pai, usando de cautela, em lugar de Raquel lhe dava Lia.
Vendo o triste pastor que com enganos lhe fora assi negada a sua pastora, como se não a tivera merecida,
Começa de servir outros sete anos, dizendo: Mais servira, se não fora pera tão longo amor tão curta a vida!
(Luís de Camões)
| | |
|
|
Luís Vaz de Camões
Pede o desejo, Dama, que vos veja
Pede o desejo, Dama, que vos veja. Não entende o que pede; está enganado. É este amor tão fino e tão delgado, Que quem o tem não sabe o que deseja.
Não há cousa a qual natural seja Que não queira perpétuo o seu estado. Não quer logo o desejo o desejado, Por que não falte nunca onde sobeja.
Mas este puro afeito em mim se dana; Que, como a grave pedra tem por arte O centro desejar da Natureza,
Assi o pensamento, pela parte Que vai tomar de mim, terrestre, humana, Foi, Senhora, pedir esta baixeza.
| | | | | | |
|
|
Luís de Camões
Com o Tempo o Prado Seco Reverdece
Com o tempo o prado seco reverdece, Com o tempo cai a folha ao bosque umbroso, Com o tempo para o rio caudaloso, Com o tempo o campo pobre se enriquece,
Com o tempo um louro morre, outro floresce, Com o tempo um é sereno, outro invernoso, Com o tempo foge o mal duro e penoso, Com o tempo torna o bem já quando esquece,
Com o tempo faz mudança a sorte avara, Com o tempo se aniquila um grande estado, Com o tempo torna a ser mais eminente.
Com o tempo tudo anda, e tudo pára, Mas só aquele tempo que é passado Com o tempo se não faz tempo presente.
| | | | | | | | | | |
| | | | | | | | | | | | | |
|
|
Glosa a mote (Acróstico)
A uma dama que se chamava Ana
A morte, pois que sou vosso, Não a quero; mas se vem, (H) A-de ser todo meu bem.
Amor, que em meu pensamento Com tanta fé se fundou, Me tem dado um regimento Que, quando vir meu tormento, Me salve com cujo sou. E com esta defensão, Com que tudo vencer posso, Diz a causa ao coração: Não tem em mim jurdição A morte, pois que sou vosso.
Por exprimentar um dia Amor, se me achava forte Nesta fé, como dizia, Me convidou com a morte, Só por ver se a tomaria. E, como ela seja a cousa Onde está todo o meu bem, Respondi-lhe, como quem Quer dizer mais, e não ousa: – Não a quero, mas se vem...
Não disse mais, porque então Entendeu quanto me toca; E se tinha dito o não, Muitas vezes diz a boca O que nega o coração. Toda a cousa defendida Em mais estima se tem. Por isso é cousa sabida Que perder por vós a vida Há-de ser todo meu bem.
| | | | | |
|
|
|
|
Luís Vaz de Camões
Eu cantarei de amor tão docemente
Eu cantarei de amor tão docemente, Por uns têrmos em si tão concertados, Que dois mil acidentes namorados Faça sentir ao peito que não sente.
Farei que amor a todos avivente, Pintando mil segredos delicados, Brandas iras, suspiros magoados, Temerosa ousadia e pena ausente.
Também, Senhora, do desprêzo honesto De vossa vista branda e rigorosa, Contentar-me-ei dizendo a menor parte.
Porém, para cantar de vosso gesto A composição alta e milagrosa, Aqui falta saber, engenho e arte.
|
| |
|
|
CANçõES E ELEGIAS
Luís de Camões
I
Canção
Fermosa e gentil Dama, quando vejo
a testa de ouro e neve, o lindo aspeito,
a boca graciosa, o riso honesto,
o colo de cristal, o branco peito,
de meu não quero mais que meu desejo,
nem mais de vós que ver tão lindo gesto.
Ali me manifesto
por vosso a Deus e ao mundo; ali me inflamo
nas lágrimas que choro,
e de mim, que vos amo,
em ver que soube amar-vos, me namoro;
e fico por mim só perdido, de arte
que hei ciúmes de mim por vossa parte.
Se porventura vivo descontente
por fraqueza desprito, padecendo
a doce pena que entender não sei,
fujo de mim e acolho-me, correndo,
à vossa vista; e fico tão contente
que zombo dos tormentos que passei.
De quem me queixarei
se vós me dais a vida deste jeito
nos males que padeço,
senão de meu sujeito,
que não cabe com bem de tanto preço?
Mas inda isso de mim cuidar não posso,
de estar muito soberbo com ser vosso.
Se, por algum acerto, Amor vos erra
por parte do desejo, cometendo
algum nefando e torpe desatino,
se ainda mais que ver, enfim, pretendo,
fraquezas são do corpo, que é de terra,
mas não do pensamento, que é divino.
Se tão alto imagino que de vista
me perco (peco nisto),
desculpa-me o que vejo;
que se, enfim, resisto
contra tão atrevido e vão desejo,
faço-me forte em vossa vista pura,
e armo-me de vossa fermosura.
Das delicadas sobrancelhas pretas
os arcos com que fere, Amor tomou,
e fez a linda corda dos cabelos;
e porque de vós tudo lhe quadrou,
dos raios desses olhos fez as setas
com que fere quem alça os seus, a vê-los.
Olhos que são tão belos
dão armas de vantagem ao Amor,
com que as almas destrui;
porém, se é grande a dor,
co a alteza do mal a restitui;
e as armas com que mata são de sorte
que ainda lhe ficais devendo a morte.
Lágrimas e suspiros, pensamentos,
quem deles se queixar, fermosa Dama,
mimoso está do mal que por vós sente.
Que maior bem deseja quem vos ama
que estar desabafando seus tormentos,
chorando, imaginando docomente?
Quem vive descontente,
não há-de dar alívio a seu desgosto,
porque se lhe agradeça;
mas com alegre rosto
sofra seus males, para que os mereça;
que quem do mal se queixa, que padece,
fá-lo porque esta glória não conhece.
De modo que, se cai o pensamento
em algüa fraqueza, de contente,
é porque este segredo não conheço;
assi que com razões, não tão somente
desculpo ao Amor do meu tormento,
mas ainda a culpa sua lhe agradeço.
Por esta fé mereço
a graça, que esses olhos acompanha,
o bem do doce riso;
mas, porém, não se ganha
cum paraíso outro paraíso.
E assi, de enleada, a esperança
se satisfaz co bem que não alcança.
Se com razões escuso meu remédio,
sabe, Canção, que porque não vejo,
engano com palavras o desejo.
| | | | | | | | | |
|
|
Luís Vaz de Camões
Busque Amor novas artes, novo engenho
Busque Amor novas artes, novo engenho, para matar-me, e novas esquivanças; que não pode tirar-me as esperanças, que mal me tirará o que eu não tenho.
Olhai de que esperanças me mantenho! Vede que perigosas seguranças! Que não temo contrastes nem mudanças, andando em bravo mar, perdido o lenho.
Mas, conquanto não pode haver desgosto onde esperança falta, lá me esconde Amor um mal, que mata e não se vê.
Que dias há que nalma me tem posto um não sei quê, que nasce não sei onde, vem não sei como, e dói não sei porquê.
| | |
|
| | |
|
|
|
|
| | | | | | | |
|
|
|
Luís Vaz de Camões
Quem vê, Senhora, claro e manifesto
Quem vê, Senhora, claro e manifesto O lindo ser de vossos olhos belos, Se não perder a vista só com vê-los, Já não paga o que deve a vosso gesto.
Este me parecia preço honesto; Mas eu, por de vantagem merecê-los, Dei mais a vida e a alma por querê-los, Donde já me não fica mais de resto.
Assim que a vida e alma e esperança, E tudo quanto tenho, tudo é vosso, E o proveito disso eu só o levo.
Porque é tamanha bem-aventurança O dar-vos quanto tenho e quanto posso, Que quanto mais vos pago, mais vos devo.
|
|
| | | | | | | | | |
|
|
|
|
|
Verdes são os campos (Luís Vaz de Camões)
Verdes são os campos, De cor de limão: Assim são os olhos Do meu coração.
Campo, que te estendes Com verdura bela; Ovelhas, que nela Vosso pasto tendes,
De ervas vos mantendes Que traz o Verão, E eu das lembranças Do meu coração.
Gados que pasceis Com contentamento, Vosso mantimento Não no entendereis;
Isso que comeis Não são ervas, não: São graças dos olhos Do meu coração.
| | | | |
|
|
NUM JARDIM ...
Num jardim adornado de verdura, a que esmaltam por cima várias flores, entrou um dia a deusa dos amores, com a deusa da caça e da espessura.
Diana tomou logo üa rosa pura, Vénus um roxo lírio, dos milhores; mas excediam muito às outras flores as violas, na graça e fermosura.
Perguntam a Cupido, que ali estava, qual daquelas três flores tomaria, por mais suave, pura e mais fermosa?
Sorrindo se, o Minino lhe tornava: todas fermosas são, mas eu queria V i o l a n t e s que lírio, nem que rosa.
Luis de Camões
| | | | | | | | | |
|
|
FERMOSA E GENTIL DAMA
Fermosa e gentil Dama, quando vejo A testa de ouro e neve, o lindo aspeito, A boca graciosa, o riso honesto, O colo de cristal, o branco peito, De meu não quero mais que meu desejo, Nem mais de vós que ver tão lindo gesto. Ali me manifesto Por vosso a Deus e ao mundo; ali me inflamo Nas lágrimas que choro, E de mim, que vos amo, Em ver que soube amar-vos, me namoro; E fico por mim só perdido, de arte Que hei ciúmes de mim por vossa parte.
Se porventura vivo descontente Por fraqueza de espírito, padecendo A doce pena que entender não sei, Fujo de mim e acolho-me, correndo, à vossa vista; e fico tão contente, Que zombo dos tormentos que passei. De quem me queixarei, Se vós me dais a vida deste jeito Nos males que padeço, Senão de meu sujeito, Que não cabe com bem de tanto preço? Mas inda isso de mim cuidar não posso, De estar muito soberbo com ser vosso.
Se, por algum acerto Amor vos erra Por parte do desejo, cometendo Algum nefando e torpe desatino, Se ainda mais que ver, enfim, pretendo, Fraquezas são do corpo, que é da terra, Mas não do pensamento, que é divino, Se tão alto imagino Que de vista me perco, ou peco nisto, Desculpa-me o que vejo; Que, se, enfim, resisto Contra tão atrevido e vão desejo, Faço-me forte em vossa vista pura, E armo-me de vossa fermosura.
Das delicadas sobrancelhas pretas Os arcos com que fere, Amor tomou, E fez a linda corda dos cabelos; E porque de vós tudo lhe quadrou, Dos raios desses olhos fez as setas Com que fere quem alça os seus a vê-los. Olhos que são tão belos, Dão armas de vantagem ao Amor, Com que as almas destrui; Porém, se é grande a dor, Coa alteza do mal a restitui;(1) E as armas com que mata são de sorte Que ainda lhe ficais devendo a morte.
Lágrimas e suspiros, pensamentos, Quem deles se queixar, fermosa Dama, Mimoso está do mal que por vós sente. Que maior bem deseja quem vos ama Que estar desabafando seus tormentos, Chorando, imaginando docomente? Quem vive descontente, Não há-de dar alívio a seu desgosto, Porque se lhe agradeça; Mas com alegre rosto Sofra seus males, pera que os mereça; Que, quem do mal se queixa que padece, Fá-lo, porque esta glória não conhece.
De modo que, se cai o pensamento Em algũa fraqueza, de contente, É porque este segredo não conheço; Assim que com razões, não tão somente Desculpo ao Amor do meu tormento, Mas ainda a culpa sua lhe agradeço. Por esta fé mereço A graça que esses olhos acompanha, O bem do doce riso; Mas, porém, não se ganha Cum paraíso outro paraíso. E assi, de enleada, a esperança Se satisfaz coo bem que não alcança.
Se com razões escuso meu remédio, Sabe, Canção, que, porque não vejo, Engano com palavras o desejo.
(1) – Terá o Poeta escrito as restitui, referindo-se às almas que o Amor destrui? Se o pronome a se refere a dor, restitui tem o sentido de cura (a dor).
Hernni Cidade, Luís de Camões - Lírica, Círculo de Leitores, Lisboa, 1973
| | | |
|
|
Quando me quer enganar ...
Quando me quer enganar
A minha bela perjura,
Para mais me confirmar
O que quer certificar,
Pelos seus olhos mo jura.
Como meu contentamento
Todo se rege por eles,
Imagina o pensamento
Que se faz agravo a eles
Não crer tão grão juramento.
Porém, como em casos tais
Ando já visto e corrente,
Sem outros certos sinais,
Quanto me ela jura mais,
Tanto mais cuido que mente.
Então, vendo-lhe ofender
Uns tais olhos como aqueles,
Deixo-me antes tudo crer,
Só pela não constranger
A jurar falso por eles.
Luís de Camões
| | |
|
|
|
De: LIFE |
Enviado: 20/12/2009 11:14 |
SONETO - 1 - Enquanto quis Fortuna que tivesse esperança de algum contentamento, o gosto de um suave pensamento me fez que seus efeitos escrevesse. Porém, temendo Amor que aviso desse minha escritura a algum juízo isento, escureceu-me o engenho co tormento, para que seus enganos não dissesse. Ó vós que Amor obriga a ser sujeitos a diversas vontades! Quando lerdes num breve livro casos tão diversos, verdades puras são, e não defeitos... E sabei que, segundo o amor tiverdes, tereis o entendimento de meus versos! Luis de Camões |
|
|
|
Busque Amor novas artes, novo engenho, para matar me, e novas esquivanças; que não pode tirar me as esperanças, que mal me tirará o que eu não tenho. Olhai de que esperanças me mantenho! Vede que perigosas seguranças! Que não temo contrastes nem mudanças, andando em bravo mar, perdido o lenho. Mas, conquanto não pode haver desgosto onde esperança falta, lá me esconde Amor um mal, que mata e não se vê. Que dias há que n'alma me tem posto um não sei quê, que nasce não sei onde, vem não sei como, e dói não sei porquê. Luis de Camões |
|
|
|
SONETO - 4 - Tanto de meu estado me acho incerto, que em vivo ardor tremendo estou de frio; sem causa, juntamente choro e rio, o mundo todo abarco e nada aperto. É tudo quanto sinto, um desconcerto; da alma um fogo me sai, da vista um rio; agora espero, agora desconfio, agora desvario, agora acerto. Estando em terra, chego ao Céu voando, num'hora acho mil anos, e é de jeito que em mil anos não posso achar ü'hora. Se me pergunta alguém porque assi ando, respondo que não sei; porém suspeito que só porque vos vi, minha Senhora. Luis de Camões |
|
|
Primer
Anterior
2 a 14 de 14
Siguiente
Último
|