O século de Descartes:
O século XVI foi uma época de importncia capital na história da humanidade, uma época de um enriquecimento prodigioso do pensamento e de uma transformação profunda da atitude espiritual do homem; uma época possuída por uma verdadeira paixão de descoberta; descoberta no espaço e descoberta no tempo; paixão pelo novo e paixão pelo antigo. Os seus eruditos desenterraram todos os textos enterrados nas velhas bibliotecas monásticas. Leram tudo, estudaram tudo, editaram tudo. Fizeram reviver todas as doutrinas esquecidas dos velhos filósofos da Grécia e do Oriente: Platão e Plotino, o estoicismo e o epicurismo, o cepticismo e o pitagorismo, o hermetismo e a cabala. Os seus sábios tentaram fundar uma ciência nova, uma física nova e uma nova astronomia; os seus viajantes e aventureiros sulcaram aros continentes e os mares, e os relatos das suas viagens levaram à concepção de uma geografia nova, de uma nova etnografia.
Alargamento sem igual da imagem histórica, geográfica, científica do homem e do mundo. (…)
Fervilhamento confuso e fecundo de ideias novas e de ideias renovadas. Renascimento de um mundo esquecido e nascimento de um mundo novo. Mas também: crítica, abalo, e enfim dissolução e mesmo destruição e morte progressiva das antigas crenças, das antigas concepções, das antigas verdades tradicionais que davam ao homem a certeza de saber e a segurança da acção. De resto, uma coisa supõe a outra. O pensamento humano é, na maior parte dos casos, polémico. E as verdades novas estabelecem-se, quase sempre, sobre o túmulo das antigas.
Seja qual for, de resto, a validade desta tese geral ela é verdadeira para o século XVI. Que tudo abalou, tudo destruiu: a unidade politica, religiosa, espiritual da Europa; a certeza da ciência e a fé; a autoridade da Bíblia e a de Aristóteles; o prestígio da Igreja e o do Estado.
Um amontoado de riqueza e um amontoado de escombros: tal é o resultado desta actividade fecunda e confusa, que tudo demoliu e nada soube construir, ou, pelo menos, acabar. Por isso, privado das suas normas tradicionais de juízo e de escolha, o homem sente-se perdido num mundo que se tornou incerto. Mundo onde nada é seguro. E onde tudo é possível.
Ora, pouco a pouco, a dúvida instala-se. Porque se tudo é possível, é que nada é verdadeiro. E se nada é seguro, só o erro certo. (…)
Os adversários de Descartes são, sem dúvida, Aristóteles e a escolástica. Mas não são, todavia, os seus únicos adversários, tal como demasiadas vezes foi dito, tal como outrora eu próprio o disse (a estes trata-se de os substituir e não de os combater): o adversário é também, e talvez sobretudo, Montaigne. Ora, Montaigne é, ao mesmo tempo, o verdadeiro mestre de Descartes.
A obra destruidora e libertadora de Montaigne – a luta contra as «superstições», os «preconceitos», mas «opiniões feitas», a falsa racionalidade escolástica – Descartes prolonga-a e leva-a até ao fim. A dúvida transformada em método, apoiada na certeza da verdade reconquistada, torna-se nas suas mãos uma pedra de toque, um poderoso instrumento de crítica, um meio de discernimento do verdadeiro e do falso. A inversão socrática, a viragem para si mesmo – Descartes segue Montaigne, ultrapassa-o e leva a análise até ao fim. A atitude céptica de Montaigne – Descartes combate-a, levando – a, também a ela, até ao fim.
É nisso, nesse radicalismo inflexível e fixo do seu pensamento – virtude muito rara e que exige muito mais que simples qualidades intelectuais, coragem, que supõe a determinação de não se deixar ficar pelo caminho, antes preservar nele custe o que custar, não obstante os obstáculos, não obstante os absurdos aparentes – é nisso que consiste a grandeza de Descartes.
E porque foi em tudo até ao fim, pôde salvar-se do labirinto do erro e da dúvida, e onde Montaigne não tinha sabido encontrar nada, nada além do vazio e de finitude, ele soube, ele, Descartes, descobrir a clareza de liberdade espiritual, reencontrar a certeza da verdade intelectual e encontra Deus. É essa a verdadeira tarefa do Discurso: reencontrar-se a si próprio e, para além da dúvida que arruína a «opinião racional», mostrar o caminho para a clareza e para a certeza do conhecimento intelectual.
A. KOYRÉ, Considerações sobre Descartes
Descartes viveu numa Europa profundamente dividida (política, religiosa e socialmente), possuída por uma curiosidade invulgar que se traduzia desde a realização das grandes viagens ao conhecimento das antigas civilizações, percorrida por uma total diversidade de opiniões e doutrinas, onde nenhuma autoridade permanecia inquestionável: a da ciência, da filosofia ou da fé, e onde a ruptura entre estas parecia inevitável.
A situação essencial do homem dessa época era a dúvida, o cepticismo, o resultado mais grave e ameaçador que as circunstncias da época haviam produzido e que podemos ver professado por autores brilhantes que, lucidamente, parecem renunciar a qualquer certeza, qualquer esperança, qualquer solidez no pensamento e na vida.
Tal aconteceu a um pensador português de então, médico e filósofo ilustre, autor de uma das mais profundas e influentes obras do seu tempo: Quod nihil scitur. Dela são retiradas afirmações célebres, simultaneamente significativas das condições presentes e já anunciadoras de posições futuras:
«É inato ao homem o querer saber; a poucos é dado o saber querer; a menos ainda o saber. Para mim não abriu a fortuna excepção. Desde o começo da minha vida prescrutava sem descanso.
A princípio, o meu espírito, ávido de saber, contentava-se com qualquer alimento que se lhe oferecia; a breve trecho, porém, se lhe tornou impossível digerir e começou a vomitar tudo o que ingeria. Tratava eu já então de ver como todo o cuidado o que havia de dar-lhe que ele digerisse e assimilasse bem: nada havia que satisfizesse os meus desejos. Passava em revista as afirmações dos passados, sondava o sentir dos vivos: respondiam o mesmo; nada, porém, que me satisfizesse. Algumas sombras de verdade, confesso, me entremostravam alguns; mas não encontrei uma só que, com sinceridade e de uma maneira absoluta, dissesse o que das coisas devíamos julgar. Voltei-me então para mim próprio; e pondo tudo em dúvida, como se até então nada se tivesse dito, comecei a examinar as próprias coisas: é esse o verdadeiro meio de saber.
Levava as minhas investigações até aos primeiros princípios. Iniciando aí as minhas reflexões, quanto mais penso, mais duvido: nada posso compreender bem. Desespero. No entanto persisto.»
Francisco Sanches – Quod nihil sci