O secretário de Estado adjunto e da Saúde admitiu  publicamente que algumas terapias usadas em alguns pacientes com cancro podem  deixar de ser financiadas em breve pelo Serviço Nacional de Saúde. Leal da Costa  põe a possibilidade de reduzir a cobertura até agora assegurada e deixar de  pagar os tais atos que ele (ao contrário dos médicos que os usam) considera de  "eficácia duvidosa". Adiantou, como exemplo "extremo", as terapias que  prolongam por pouco tempo a vida de alguns doentes de cancro. A Ordem dos  Médicos e duas associações de doentes oncológicos consideraram esta afirmação  "alarmante para os doentes" e as declarações do governante "desumanas" e  "perversas".   
 Para além de doentes e médicos, muitas almas sensíveis terão  ficado chocadas com esta ideia. Julgarão que, agora sim, o governo  ultrapassou a fronteira que a dignidade humana exigiria. Que cabe ao Serviço  Nacional de Saúde lutar até aos limites do conhecimento científico e da vontade  de doentes e famílias, apoiados pelo saber dos médicos, pela vida das pessoas. E  que o momento da morte não pode depender do dinheiro que cada um tenha na  carteira ou no banco.   
 Que parte do que se está a passar nos últimos dois anos não  perceberam?   
 Não ouviram dizer que o nosso Estado era gordo?  Julgavam que a gordura era o quê? As parecerias público-privadas? Os benefícios  fiscais à banca? O resgate a instituições financeiras falidas? O Estado sempre  foi gordo para quem mais tem. O que o Estado Social trouxe de novo é que passou  a tratar dos mais pobres. Não é o Estado Social incomportável? Julgavam  que o poder diferenciado de pobres e ricos não se ia sentir na hora de emagrecer  o Estado? Achavam que aquele que é, segundo os rankings internacionais, um dos  melhores sistemas públicos de saúde de mundo era compatível com a dieta do  Estado?   
 Não ouviram dizer que o Estado asfixia a iniciativa  privada? Julgavam que nesta libertação do jugo estatal as empresas  dispensariam o mais lucrativo dos negócios, com procura certa e consumidores  desesperados? Julgavam que era nos trocos que se estava a pensar? Não tínhamos  de acabar com "Estado paizinho"? Julgavam que este desprendimento  ganharia uma súbita sensibilidade na hora da morte?   
 Não ouviram dizer que, num dos países mais pobres e desiguais  da Europa, vivíamos acima das nossas possibilidades? Se vivíamos acima  das nossas possibilidades, não acham que vivemos para lá das nossas  possibilidades? E que viver mais uns dias, mais umas semanas, é um luxo  incomportável?   
 Não ouviram dizer que para sairmos da crise teríamos de  empobrecer? Julgaram que empobrecer era uma coisa limpa e honrada? Que não  se pagaria em vidas, em fome e em ignorância? Não compraram a estúpida ideia de  que os portugueses andaram a viver como se não houvesse amanhã, entre a compra  de carros topo de gama e viagens a Cancun? Cumprida a promessa de empobrecimento  de um povo já pobre queixam-se de quê? Dos "portugueses", de que esta gente  falava, afinal não serem uma entidade abstrata, mas cada um nós?   
 Não, o governo não passou fronteira nenhuma. Passámo-la nós  todos, quando aceitámos sem indignação este discurso. Quando tratámos como  coisa menor os ataques ao Estado Social que conquistámos contra a vontade de  quem sempre viveu do privilégio. Não percebendo que foi ele que permitiu, à  maioria de nós, o nascimento em segurança, o ensino garantido, o aumento da  nossa esperança de vida.   
 Quando alguns dizem que o saque às funções sociais do  Estado a que estamos a assistir é criminoso não estão a socorrer-se de  liberdades literárias ou de um excesso de adjetivação. É mesmo criminoso. No  sentido literal do termo. A transferência de recursos do Estado e dos  rendimentos do trabalho para a ganância privada terá um preço. O empobrecimento  que nos vendem como coisa purificadora terá as suas vítimas. O preço será em  vidas e em dignidade. As  as vítimas serão as do costume. Pena que sejam  elas, tantas vezes, a comprar com entusiasmo ou resignação a propaganda dos que  nunca toleraram a ideia de, nos últimos trinta anos, os pobres deste país terem  conquistado alguma dignidade, prejudicando com as suas conquistas tantas  oportunidades de negócio.   
 Não há nenhuma nova perversidade ou desumanidade no que disse  o secretário de Estado. É apenas a consequência lógica do discurso agora  dominante. Esse sim, perverso e desumano. Se continuarmos a aceitar sem luta  perder tudo o que conquistámos, a proposta deste senhor nem será assunto daqui a  uns tempos. Porque isto é só o começo
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