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O Perfume da Rosa
Quem bebe, rosa, o perfume Que de teu seio respira? Um anjo, um silfo? Ou que nume De seu trono te ajoelha, E esse néctar encantado Bebe oculto, humilde abelha? — Ninguém? — Mentiste: essa frente Em languidez inclinada, Quem te pôs assim pendente? Dize, rosa namorada. E a cor de púrpura viva Como assim te desmaiou? E essa palidez lasciva Nas folhas quem te pintou? Os espinhos que tão duros Tinhas na rama lustrosa, Com que magos esconjuros Tos desarmaram, ó rosa? E porquê, na hástia sentida Tremes tanto ao pôr do Sol? Porque escutas tão rendida O canto do rouxinol? Que eu não ouvi um suspiro Sussurrar-te na folhagem? Nas águas desse retiro Não espreitei a tua imagem? Não a vi aflita, ansiada... — Era de prazer ou dor? – Mentiste, rosa, és amada, E tu também tu amas, flor. Mas ai!, se não for um nume O que em teu seio delira, Há-de matá-lo o perfume Que nesse aroma respira.
Almeida Garrett
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GARRETT
AS FOLHAS CAÍDAS
Assomava a Primavera de 1849. – Nesse tempo, em Portugal, havia Primavera. – Deixou bem gratas recordações àqueles, que são hoje açoitados, em Abril e Maio, com as granizadas aspérrimas de Dezembro!
Os dias da estação vernal chegavam-nos sorridentes, azuis e iluminados. As roseiras nos jardins, o pomar na horta, o relvão nas chapadas, cobriam-se de botões e de flores.
O pardal nos beirais dos telhados, as andorinhas nos ares, as toutinegras, os rouxinóis nos balcedos e nas faias sussurrantes e sombreiras, papeavam, alegres e enamorados.
A Ajuda, nesta época, era deserta e silenciosa. Ruínas a cada passo. No largo da Patriarcal, que desabara, só havia de pé a torre! O grande sino, melancólico e solene, batia as horas e os quartos. Os ecos, repetindo-se de quebrada em quebrada, expiravam no fundo do vale, lá em baixo, na margem do rio.
O silêncio, quando o vento estava sul, era interrompido pelos sons vibrantes das bandas marciais de Infantaria 1 e de Lanceiros 2. às vezes, de envolta com as ondas de sons, vinham gritos dilacerantes, despedaçadores; gritos que é preciso ouvir, para ter perfeita ideia deles! Partiam do peito de um soldado, cujas costas eram retalhadas cruelmente no suplício da vara!
O palácio, enorme, vazio e sonoro, além de algumas velhas e pobres criadas do antigo paço, abrigava bandadas de pombos, que tinham farto pastio nas sementeiras ferazes da serra do Monsanto, na baga do zimbro, na flor do loureiro bravo e sombra propícia no Zambujal fechado da realenga tapada.
Os subúrbios da Ajuda eram deliciosos. Ao pé da porta o jardim Botnico, dirigido por José Maria Grande. Não ficava longe o ameníssimo vale das Romeiras e, querendo alargar um pouco o passeio, tínhamos Carnaxide, Linda-a-Velha e Linda-a-Pastora, com as suas casitas a alvejar de entre a verdura dos quintais; e então, como pitorescas, quando as searas tenras circunjacentes ondeavam com o norte límpido, que ao mesmo tempo fazia girar, silvando, as velas brancas dos moinhos, agrupados, aqui e além, nos outeiros crespos e pelo dorso flexuoso da serra!
***
Um dia Almeida Garrett escreveu uma longa carta a Alexandre Herculano. Nesse papel fazia-se uma confidência amarga! O poeta havia levado mais um revés, dos muitos da sua combatida e aventurosa existência.
Estava num momento análogo àquele, que lhe inspirara numas páginas de prosa, que vêm nas Flores sem fruto – esta apóstrofe à solidão:
«Solidão, eu te saúdo! Silêncio dos bosques, salve!
A ti venho, ó natureza: abre-me o teu seio.
Venho depor nele o peso aborrecido da existência; venho despir as fadigas da vida.»
Supunha, iludido pela dor, que poderia (prescindir do mundo, ele, o mais mundano de todos os artistas; ele, para quem os fastígios do poder, as pompas do luxo, os máximos requintes do gosto; as pérolas, as safiras, as esmeraldas e os diamantes, rutilando no seio, nas mãos, nos cabelos negros retintos, ou loiros acendrados, da mulher apetecida – ou adorada – se tornavam impreteríveis!
Mas, no momento, a sua dor era intensa e sincera; por isso, confirmando o preceito de Horácio, ao descrevê-la a todos nos comovia.
Grandes foram as provações por que passou aquele desmesurado espírito! Para quem o lidou de perto, sobretudo nos últimos tempos, pelos seus versos – Flores sem Fruto e Folhas Caídas – é fácil determinar quais foram as crises, os acessos dolorosos, no drama daquele coração, que teve mais de um afecto, que facilmente se deixava seduzir, mas que tão profunda, tão arrebatadamente se apaixonava!
Depois de grandes desgostos domésticos, que as dicacidades brutais e malévolas de nimos – corrompidos vinham ainda envenenar, o poeta parecia sucumbir aos revezes da má fortuna.
Uns versos das Flores sem fruto explicam o estado da alma do autor do Camões, nesse período. Não é a dor acerba, é o desalento supremo; tédio, fastio moral, o mais requintado tormento, que pode cruciar o homem!
Quando uma luz imprevista, serena e penetrante, o veio arrancar àquela apatia moral, o poeta disse:
Eu caminhava só, e sem destino, No deserto da vida; Na alma apagada a luz, e o desatino Na vista esmorecida: E afastava de mim, que me empeciam No caminhar adiante, Os prazeres dos homens, que sorriam, E a turba delirante, De seus empenhos vãos. – Aos que gemiam Sorria eu de inveja... Quem pudera gemer!... mas arredava Esses também: não seja Traição a sua dor! – Eu caminhava Só, triste, só, sem luz e sem destino, A vista esmorecida, A alma gasta, apagada, e ao desatino, No deserto da vida.
Quem não atravessou uma crise funesta não escreve assim. A vida do homem tem destes momentos psicológicos; mas é preciso ser um grande artista, para lhe acertar com a nota verdadeira, propriamente humana!
Mais adiante, apelando para o suicídio, o poeta exclama:
E sentei-me, cansado, num rochedo, Triste como eu, e só, No meio deste vale de degredo, De lágrimas e dó. Caiu-me a fronte sobre as mãos pesada, E meditei comigo: – Não é melhor pôr fim a esta jornada, E poisar no jazigo?... ................................................
Do céu, morno e pesado, as nuvens rarefazem-se e ele diz:
Olhei... e vi o azul do firmamento Só, sem nenhum brilhar De estrelas, ou de lua... Mas logo se inundava, num momento, De uma luz alva, doce e resplandente, Que me entrou toda na alma!... ................................................
Esta luz, esta nova estrela do poeta, era de certo a singular criança de dezoito anos, cheia de talento, primorosamente educada, bela e, sobretudo, fina, que se enamorara perdidamente do génio e da viuvez de coração de Almeida Garrett, cujo nome era saudado nos jornais, aplaudido no teatro, coroado no Parlamento, e nas academias!
Ele emprestou-lhe a Nova Heloísa do apaixonado João Jacques. O livro levava, a lápis, umas notas intencionais.
Adelaide respondeu a elas e um dia, cega, arrebatada, perdida, pungido o coração que exaurira, na nsia de amar, as derradeiras notas do prazer, deixou tudo, tudo... o enleio das suas fantasias virginais, o ambicionado futuro de uma união santa, o mundo, a fama e o seio materno, para refugiar-se transportada, nos braços do genial poeta!
Quem lhe não havia de perdoar o seu erro, o seu crime – se crime foi – redimido por tamanho amor!
Pondo de parte o extraordinário Miguel ngelo, de quem se conta, que não amou em toda a sua vida senão a Victoria Colonna e que, só depois de morta, lhe deu o primeiro beijo, os artistas são susceptíveis de diversas e desvairadas impressões. É providencial, às vezes! Se Garrett, já no declinar da vida, não fosse acometido de nova leviandade – se por tal a querem capitular não teríamos esse livro delicioso, que se intitula Folhas Caídas.
***
Estavam quase todas escritas as Folhas Caídas quando, em 1849, o autor veio para o eremitério da Ajuda. – A serenidade luminosa daquela casa convinha ao estado de espírito do poeta em tal momento. Não podia escolher melhor retiro.
Enquanto o autor da História de Portugal prosseguia no grandioso trabalho, Garrett, no seu quarto, cuja janela deitava para um lindíssimo panorama, tinha horas recolhidas e meditadas –, agora, corrigindo este verso, ou limando tal período de prosa, logo tirando da estante um livro e folheando este ou aquele autor predilecto.
O grande poeta, nesse tempo, tinha cinquenta anos.
Ao escrever estas linhas, tão vivo se me está retratando na memória, que me parece vê-lo!
Em muito rapaz, uma desastrada queda arrancara-lhe a pele desde a nuca até à parte superior do crnio, obrigando-o a usar cabelo postiço; mas com tal arte o trazia, que parecia de um desalinho natural. A testa ampla e não sulcada de rugas.
Os olhos, rasgados, luminosos e insinuantes, eram garços. O olhar, fundo e meditativo, iluminava-se, a espaços, de luz faiscante. Não conheci mais expressivo olhar! As pálpebras pisadas. A barba em volta do queixo, ao uso do seu tempo, sem bigode; uma pequena mosca. A boca um pouco grande; o beiço inferior grosso; mas a linha graciosa e finíssinia. Voz não a ouvi mais harmoniosa e atraente; voz máscula, de barítono, modelada pelo gosto e pela arte. Como lia, como recitava e como falava! A estatuar mediana; peito e ombros largos –, mãos fortes e cabeludas.
Caluniaram-no também, quando disseram que todo ele era estofos; nada tinha de empréstimo, a não ser o cabelo, por um acidente, como já disse.
Na conversação toda a sua fisionomia, tão espirituosa, tão distinta, animava-se de expressão indefinível.
às vezes dizia:
– Vamos arrepiar a pena ao Patinho.
E contava-me uma aventura picante, em que se ocultava o nome do herói, que era ele próprio.
Dos homens como João Baptista, quantos primores – maravilhas, diremos – se não perdem para a posteridade!
Quanta coisa viva e espontnea, do colorido mais brilhante; quantos conceitos profundos, observações penetrantes, não voam na conversação dos talentos superiores, quando têm, como Garrett, a singular faculdade da palavra!
Que não houvesse ali, na casa da Ajuda, já descoberta, essa Maravilha de encerrar e conservar o som e se abrisse agora para ouvirmos o dono da casa e os seus dois hóspedes – Garrett e Rebelo da Silva como eu os ouvi tanta vez!
O poeta aprendera na grande roda e nas grandes lutas a arte de guardar as aparências, a dolorosa, mas impreterível arte da dissimulação, para escapar, quanto possível, às ciladas deste mundo. Ali, porém, estava entre corações amigos e, sem fazer confidências, podia desafogadamente soltar um suspiro!
A nobre alma de Alexandre Herculano, sempre disposta e sempre solícita a acudir a todas as dores humanas, com quanta singeleza, com que delicadíssima e fraterna estima tratou Garrett, durante aquela memorável temporada!
Depois da morte de Adelaide, sucederam-se longos, inertes e amargos dias para o poeta, que chorava sobre um túmulo e velava sobre um berço! Uma vez, porém, embora:
Qual o ataúde levado A egípcio festim...
foi, foi à festa!
Era a noite da loucura, Da sedução, do prazer, Que em sua mantilha escura Costuma tanta ventura, Tantas glórias esconder. ...................................
Revia-se a melancolia no rosto do consternado poeta:
Mas a orquestra bradou alta – Festa, festa! e salta, salta! Os seus guizos delirantes Sacode, louca, a Folia... Adeus, requebros de amantes! Suspiros, quem nos ouvia? ...................................
Dali a pouco, estava escrito que outra fascinação viria tomar-lhe a alma de assalto:
Quem é esta que mais voltas Gira, gira, sem cessar? Como as roupas, leves, soltas, Aéreas leva a ondular, Em torno à forma graciosa, Tão fina! – Agora parou, E tranquila se assentou.
Que rosto! Em linhas severas Se lhe desenha o perfil; E a cabeça tão gentil, Como se fora deveras A rainha dessa gente, Como a levanta insolente!
O risco é inevitável; a perdição está por um fio!
Vive Deus! que é ela... aquela, A que eu vi na tal janela, E que, triste, me sorria, Quando, passando, me via Tão pasmado, a olhar para ela! ......................................
Estes e os demais versos, foram feitos ao novo ídolo, ao derradeiro Ignoto Deo do poeta; mas o Adeus, que os precede, e que vale por eles todos, é uma súplica encarecida, perdão implorado com lágrimas acerbas, à memória daquela Adelaide, que tudo sacrificou por ele, a mãe da sua única e adorada filha!
Nunca o poeta, quando na flor e na força da vida, escreveu nada mais realista, mais sinceramente apaixonado! Nunca o lirismo do amor subiu mais alto, foi mais puro e arrebatado! Parece que as lágrimas trazem sangue espumante, que o remorso espremeu do coração!
Adeus! Para sempre adeus! Vai-te! Oh; vai-te! Que nesta hora Sinto a justiça dos céus Esmagar-me a alma, que chora. Choro, porque não te amei,
Choro o amor que me tiveste! O que eu perco, bem no sei, Mas tu... tu nada perdeste: Que este mau coração meu, Nos secretos escaninhos, Tem venenos tão daninhos, Que o seu poder só sei eu! ...................................
Leiam estes prodigiosos versos, versos de paixão, que poeta algum escreveu em tal idade, e hão-de sentir as angústias e dores que lhe salteavam a alma ante a mudez do túmulo onde jazia a morta, que o idolatrou!
Fraquezas de espírito, misérias humanas, ninguém se disciplinou delas com mais desenganado açoite, nem houve Job que se cobrisse de cinza com mais humilde contrição, voltando o farpão, da própria língua contra a carne viva dos próprios vícios! Ninguém se penitendou tão sincera e cruelmente, como o grande poeta, nestes singulares versos!
Por milénios lhe podiam contar os pecados, que todos redimiu com o fervor de tal arrependimento!
Oiçamo-lo agora, oiçamo-lo, quando se despede da sombra pálida que, ao separar-se dele para sempre, lhe legara, como última fineza do seu amor, o tesouro de uma filha:
................................... Vai, vai... para sempre, adeus! Para sempre, aos olhos meus, Sumido seja o clarão de tua divina estrela! Faltam-me olhos e razão Para a ver, para entendê-la. Alta está no firmamento Demais, e demais é bela Para o baixo pensamento Com que, em má hora, a fitei; Falso e vil o encantamento Com que a luz lhe fascinei. Que volte a sua beleza Do azul do céu à pureza, E que a mim me deixe aqui Nas trevas em que nasci; Trevas negras, densas, feias, Como é negro este aleijão, Donde me vem sangue às veias, Este que foi coração, Este que amar-te não sabe, Porque é só terra – e não cabe Nele uma ideia dos céus... Oh! vai, vai; deixa-me! Adeus!
***
Correram, para o apartado eremitério da Ajuda, gratos e saudosíssimos os meses do Verão de 1849!
No ano seguinte, Almeida Garrett, em Julho, veio passar um dia connosco. Rebelo da Silva e o conde de Carvalhal tinham aparecido acaso. Conde de Carvalhal, a flor da elegncia, o extremo da educação, o primor do gosto e, mais do que tudo ainda – uma alma brilhante e transparente como cristal de Boémia!
às duas e meia, em ponto – hora habitual –, fomos para a mesa. Alexandre Herculano estava de bom humor, como os grandes batalhadores em tempo de guerra.
Tinha escrito Eu e o Clero e esperava a força da refrega para cair, de sabre em punho e à escala vista, no baluarte inimigo. Garrett, que parecia de nimo desanuviado, deu largas à fecunda palavra.
Ao café apareceu José Maria Grande, que vinha convidar-nos a passar a tarde no jardim Botnico, onde tinha ido ser sua hóspeda uma família da nossa primeira sociedade.
Quando, à noite, nos reunimos na casa do jardim Botnico, entre outras pessoas, eramos – as que havíamos jantado na Ajuda, mais o conde de Belmonte, e D. João e D. Gastão da Cmara. Restam vivos Carvalhal, D. Gastão e eu.
Animando a sala havia duas senhoras: uma casada, outra solteira.
Ambas também já não pertencem ao número dos vivos!
A solteira era alta, delgada; a cinta estreita; o pé andaluz; as mãos finas; a cabeça pequena, o cabelo louro, com reflexos de fogo e às ondas. A boca, pequena e vermelha, sorrindo, juvenil e alegre, deixava entrever dois renques de pérolas. Os olhos azuis e vía-se neles o azul cristalino e etéreo da sua alma angélica! Amava cegamente e tinha diante dos olhos aquele a quem, dali a quatro anos contados, havia de entregar o seu apaixonado coração de amante e de esposa. Esta senhora chamava-se: Matilde Montufar.
Oh! que dias de luz há no mundo! Luz intensa, cintilante, deslumbradora que, na tremenda a imutável antítese da vida, tem de ser contrastada pelas sombras caliginosas e profundas!
A meio da noite pediram, com viva instncia, versos. Recitei o ADEus das Folhas Caídas, então inéditas.
A disposição dos espíritos, a novidade e extraordinária beleza daqueles versos, a presença do autor, tudo concorreu, para que a sensação produzida fosse grande. Garrett sabia dominar-se; porém, a muito custo conteve a comoção.
Neste momento mais do que nunca, a imagem serena e resignada, que se invocava naqueles versos, devia pungi-lo no centro do coração, e na fibra do remorso!
Oh! vai-te, vai, longe, embora! Que te lembre sempre e agora Que não te amei nunca... Ai! não. E que pude, a sangue frio, Covarde, infame, vilão, Gozar-te – mentir sem brio, Sem alma, sem dá, sem pejo, Cometendo em cada beijo Um crime... Ai! triste, não chores, Não chores, anjo do céu, Que o desonrado sou eu. ...................................
No resto dessa noite, nos belos olhos e no rosto do poeta, serenavam, a custo, as ondas de uma tempestade!
Março 22, 1884.
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FOLHAS CAÍDAS
Almeida Garret
Advertência
Antes que venha o Inverno e disperse ao vento essas folhas de poesia que por aí caíram, vamos escolher uma ou outra que valha a pena conservar, ainda que não seja senão para memória.
A outros versos chamei eu já as últimas recordações da minha vida poética. Enganei o público, mas de boa-fé, porque me enganei primeiro a mim. Protestos de poetas que sempre estão a dizer adeus ao mundo, e morrem abraçados com o louro - às vezes imaginário, porque ninguém os coroa.
Eu pouco mais tinha de vinte anos quando publiquei certo poema, e jurei que eram os últimos versos que fazia. Que juramentos!
Se dos meus se rirem, têm razão; mas saibam que eu também primeiro me ri deles. Poeta na primavera, no estio e no outono da vida, hei-de sê-lo no inverno, se lá chegar, e hei-de sê-lo em tudo. Mas dantes cuidava que não, e nisso ia o erro.
Os cantos que formam esta pequena colecção pertencem todos a uma época de vida íntima e recolhida que nada tem com as minhas outras colecções.
Essas mais ou menos mostram o poeta que canta diante do público. Das Folhas Caídas ninguém tal dirá, ou bem pouco entende de estilos e modos de cantar.
Não sei se são bons ou maus estes versos; sei que gosto mais deles do que de nenhuns outros que fizesse. Porquê? É impossível dizê-lo, mas é verdade. E, como nada são por ele nem para ele, é provável que o público sinta bem diversamente do autor. Que importa?
Apesar de sempre se dizer e escrever há cem mil anos o contrário, parece-me que o melhor e mais recto juiz que pode ter um escritor é ele próprio, quando o não cega o amor-próprio. Eu sei que tenho os olhos abertos, ao menos agora.
Custa-lhe a uma pessoa, como custava ao Tasso, e ainda sem ser Tasso, a queimar os seus versos, que são seus filhos; mas o sentimento paterno não impede de ver os defeitos das crianças.
Enfim, eu não queimo estes. Consagrei-os ignoto deo. E o deus que os inspirou que os aniquile, se quiser: não me julgo com direito de o fazer eu.
Ainda assim, no ignoto deo não imaginem alguma divindade meia velada com cendal transparente, que o devoto está morrendo que lhe caia para que todos a vejam bem clara. O meu deus desconhecido é realmente aquele misterioso, oculto e não definido sentimento de alma que a leva às aspirações de uma felicidade ideal, o sonho de oiro do poeta.
Imaginação que porventura se não realiza nunca. E daí, quem sabe? A culpa é talvez da palavra, que é abstracta de mais. Saúde, riqueza, miséria, pobreza e ainda coisas mais materiais, como o frio e o calor, não são senão estados comparativos, aproximativos. Ao infinito não se chega, porque deixava de o ser em se chegando a ele.
Logo o poeta é louco, porque aspira sempre ao impossível. Não sei. Essa é uma disputação mais
longa. ,
Mas sei que as presentes Folhas Caídas representam o estado de alma do poeta nas variadas, incertas e vacilantes oscilações do espírito, que, tendendo ao seu fim único, a posse do Ideal, ora pensa tê-lo alcançado, ora estar a ponto de chegar a ele, ora ri amargamente porque reconhece o seu engano, ora se desespera de raiva impotente por sua credulidade vã.
Deixai-o passar, gente do mundo, devotos do poder, da riqueza, do mando, ou da glória. Ele não entende bem disso, e vós não entendeis nada dele.
Deixai-o passar, porque ele vai onde vós não ides; vai, ainda que zombeis dele, que o calunieis, que o assassineis. Vai, porque é espírito, e vós sois matéria.
E vós morrereis, ele não. Ou só morrerá dele aquilo em que se pareceu e se uniu convosco. E essa falta, que é a mesma de Adão, também será punida com a morte.
Mas não triunfeis, porque a morte não passa do corpo, que é tudo em vós, e nada ou quase nada no poeta.
Janeiro, 1853.
Livro Primeiro
I
Ignoto Deo
D.D.D.
Creio em ti, Deus: a fé viva
De minha alma a ti se eleva.
És - o que és não sei. Deriva
Meu ser do teu: luz... e treva,
Em que - indistintas! - se envolve
Este espírito agitado,
De ti vem, a ti devolve.
O Nada, a que foi roubado
Pelo sopro criador
Tudo o mais, o há-de tragar.
Só vive de eterno ardor
O que está sempre a aspirar
Ao infinito donde veio.
Beleza és tu, luz és tu,
Verdade és tu só. Não creio
Senão em ti; o olho nu.
Do homem não vê na terra
Mais que a dúvida, a incerteza,
A forma que engana e erra.
Essência!, a real beleza,
O puro amor - o prazer
Que não fatiga e não gasta...
Só por ti os pode ver
O que inspirado se afasta,
Ignoto Deus, das ronceiras,
Vulgares turbas: despidos
Das coisas vãs e grosseiras
Sua alma, razão, sentidos,
A ti se dão, em ti vida,
E por ti vida têm. Eu, consagrado
A teu altar, me prosto e a combatida
Existência aqui ponho, aqui votado
Fica este livro - confissão sincera
Da alma que a ti voou e em ti só ‘spera.
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O anjo caído
Era um anjo de Deus Que se perdera dos céus E terra a terra voava. A seta que lhe acertava Partira de arco traidor, Porque as penas que levava Não eram penas de amor.
O anjo caiu ferido E se viu aos pés rendido Do tirano caçador. De asa morta e sem esplendor O triste, peregrinando Por estes vales de dor, Andou gemendo e chorando.
Vi-o eu, n anjo dos céus, O abandonado de Deus, Vi-o, nessa tropelia Que o mundo chama alegria, Vi-o a taça do prazer Pôr ao lábio que tremia E só lágrimas beber.
Ninguém mais na terra o via, Era eu só que o conhecia Eu que já não posso amar! Quem no havia de salvar? Eu, que numa sepultura Me fora vivo enterrar? Loucura! Ai, cega loucura!
Mas entre os anjos dos céus Cantava um anjo ao seu Deus; E remi-lo e resgatá-lo, Daquela infmia salvá-lo Só força de amor podia. Quem desse amor há-de amá-lo, Se ninguém o conhecia?
Eu só, - e eu morto, eu descrido, Eu tive o arrojo atrevido De amar um anjo sem luz. Cravei-a eu nessa cruz Minha alma que renascia, Que toda em sua alma pus, E o meu ser se dividia,
Porque ela outra alma não tinha, Outra alma senão a minha... Tarde, ai! tarde o conheci, Porque eu o meu ser perdi, E ele à vida não volveu... Mas da morte que eu morri Também o infeliz morreu.
Almeida Garret
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GARRETT

Folhas Caídas
II
Adeus!
Adeus!, para sempre adeus!,
Vai-te, oh!, vai-te, que nesta hora
Sinto a justiça dos Céus
Esmagar-me a alma que chora.
Choro porque não te amei,
Choro o amor que me tiveste;
O que eu perco, bem no sei,
Mas tu... tu nada perdeste:
Que este mau coração meu
Nos secretos escaninhos
Tem venenos tão daninhos
Que o seu poder só sei eu.
Oh!, vai... para sempre adeus!
Vai, que há justiça nos Céus.
Sinto gerar na peçonha
Do ulcerado coração
Essa víbora medonha
Que por seu fatal condão
Há-de rasgá-lo ao nascer:
Há-de, sim, serás vingada,
E o meu castigo há-de ser
Ciúme de ver-te amada,
Remorso de te perder.
Vai-te, oh!, vai-te, longe, embora,
Que sou eu capaz agora
De te amar - Ai!, se eu te amasse!
Vê se no árido pragal
Deste peito se ateasse
De amor o incêndio fatal!
Mais negro e feio no Inferno
Não chameja o fogo eterno.
Que sim? Que antes isso? - Ai, triste!
Não sabes o que pediste.
Não te bastou suportar
o cepo-rei; impaciente
Tu ousas a deus tentar
Pedindo-lhe o rei-serpente!
E cuidas amar-me ainda?
Enganas-te: é morta, é finda,
Dissipada é a ilusão.
Do meigo azul de teus olhos
Tanta lágrima verteste,
Tanto esse orvalho celeste
Derramado o viste em vão
Nesta seara de abrolhos,
Que a fonte secou. Agora
Amarás... sim, hás-de amar,
Amar deves... Muito embora...
Oh!, mas noutro hás-de sonhar
Os sonhos de oiro encantados
Que o mundo chamou amores.
E eu réprobo... eu se o verei?
Se em meus olhos encovados
Der a luz de teus ardores...
Se com ela cegarei?
Se o nada dessas mentiras
Me entrar pelo vão da vida...
Se, ao ver que feliz deliras,
Também eu sonhar ...Perdida,
Perdida serás - perdida.
Oh!, vai-te, vai, longe, embora!
Que te lembre sempre e agora
Que não te amei nunca... ai!, não:
E que pude a sangue-frio,
Covarde, infame, vilão,
Gozar-te - mentir sem brio,
Sem alma, sem dó, sem pejo,
Cometendo em cada beijo
Um crime... Ai!, triste, não chores,
Não chores, anjo do Céu,
Que o desonrado sou eu.
Perdoar-me, tu?... Não mereço.
A imundo cerdo voraz
Essas pérolas de preço
Não as deites: é capaz
De as desprezar na torpeza
De sua bruta natureza.
Irada, te há-de admirar,
Despeitosa, respeitar,
Mas indulgente... Oh!, o perdão
É perdido no vilão,
Que de ti há-de zombar.
Vai, vai... para sempre adeus!
Para sempre aos olhos meus
Sumido seja o clarão
De tua divina estrela.
Faltam-me olhos e razão
Para a ver, para entendê-la:
Alta está no firmamento
De mais, e de mais é bela
Para o baixo pensamento
Com que em má hora a fitei;
Falso e vil o encantamento
Com que a luz lhe fascinei.
Que volte a sua beleza
Do azul do céu à pureza,
E que a mim me deixe aqui
Nas trevas em que nasci,
Trevas negras, densas, feias,
Como é negro este aleijão
Donde me vem sangue às veias,
Este que foi coração,
Este que amar-te não sabe
Porque é só terra - e não cabe
Nele uma ideia dos Céus ...
Oh!, vai, vai; deixa-me adeus!
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CAMõES NÁUFRAGO
Cedendo à fúria de Neptuno irado Soçobra a nau que o grão tesouro encerra; Luta coa morte na espumosa serra O divino cantor do Gama ousado.
Ai do Canto mimoso a Lísia dado!... Camões, grande Camões, embalde a terra Teu braço forte, nadador aferra Se o Canto lá ficou no mar salgado.
Chorai, Lusos, chorai! Tu morre, ó Gama, Foi-se a tua glória... Não; lá vai rompendo Coa dextra o mar, na sestra a lusa fama.
Eterno, eterno ficará vivendo: E a torpe inveja, que inda agora brama, No abismo cairá do Averno horrendo | | | |
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