PRIMEIROS CONSELHOS DO OUTONO
Antero de Quental
Ouve tu, meu cansado coração, O que te diz a voz da Natureza: - Mais te valera, nu e sem defesa, Ter nascido em asperrima solidão,
Ter gemido, ainda infante, sobre o chão Frio e cruel da mais cruel devesa, Do que embalar-te a Fada da Beleza, Como embalou, no berço da ilusão!
Mais valera a tua alma visionaria, Silenciosa e triste ter passado Por entre o mundo hostil e a turba varia,
(Sem ver uma só flor das mil, que amaste,) Com ódio e raiva e dor - que ter sonhado Os sonhos ideais que tu sonhaste! -
AMOR
Antero de Quental
Esse negro corcel, cujas passadas Escuto em sonhos, quando a sombra desce, E, passando a galope, me aparece Da noite nas fantásticas estradas,
Donde vem ele? Que regiões sagradas E terríveis cruzou, que assim parece Tenebroso e sublime, e lhe estremece Não sei que horror nas crinas agitadas?
Um cavaleiro de expressão potente, Formidável, mas plácido, no porte, Vestido de armadura reluzente,
Cavalga a fera estranha sem temor: E o corcel negro diz: "Eu sou a morte!" Responde o cavaleiro: "Eu sou o Amor!"
MARIA
Antero de Quental
Tenho cantado esperanças... Tenho falado damores... Das saudades e dos sonhos Com que embalo as minhas dores...
Entre os ventos suspirando Vagas, tênues harmonias, Tendes visto como correm Minhas doidas fantasias.
E eu cuidei que era poesia Todo esse louco sonhar... Cuidei saber o que e vida Só porque sei delirar...
Só porque a noite, dormindo Ao seio duma visão, Encontrava algum alivio, Meu dorido coração,
Cuidei ser amor aquilo E ser aquilo viver... Oh! que sonhos que se abraçam Quando se quer esquecer !
Eram fantasmas que a noite Trouxe, e o dia já levou... A luz d?estranha alvorada Hoje minha alma acordou !
Esquecei aqueles cantos... Só agora sei falar ! Perdoa-me esses delírios... Só agora soube amar !
BEATRICE
Antero de Quental
Nem visão, nem real: amor! amor somente!... Pois quem sabe o que diz esta palavra - amor - ? Quando deixa cair no peito esta semente, Diz o que há-de brotar, acaso, o Deus-Senhor
Somente amor... Somente?! e pouco esta palavra? Duas silabas só - em pouco um mundo esta - Loucos! mas, quando o amor se expande, e cresce, e lavra, Bem como incêndio a arder, tão pouco inda será?
Gota, que alaga o mundo! átomo, e apos, colosso! Mas este nada ou mundo, a mim quem mo aqui pôs! Foi Deus! de Deus me vem... e a Deus medir não posso: E imenso o que vem dele... os nadas somos nós.
E o nada, que me abriu no peito e, feito imenso, O encheu, bem como um vaso, abrindo, encheu a flor, Há-de alagar teu peito e ser do templo incenso... Mulher! hás-de escutar, que eu vou falar damor!
Falar damor?!... se ele e como uma essência, Que nos perfuma, sem se ver de donde... Se ele e como o sorriso da inocência, Que inda se ignora e, pra sorrir, se esconde...
Se e o sonho das noites vaporoso, Que anda no ar, sem que possamos vê-lo... Se e a concha no oceano caprichoso, Se e das ondas do mar ligeiro velo...
Se e suspiro, que oculto se descerra, Se escuta, mas se ignora de que banda... Se e estrela, que manda a luz a terra, Sem se ver de que paramos a manda...
Se e sonho, que sonhamos acordado... Suspiro, que soltamos sem senti-lo... Sopro que vai dum lado a outro lado... Sopro ou sonho, quem pode repeti-lo?
Falar do amor... do amor! o sempre-mudo! Se e segredo entre dois, como dizê-lo, Sem divulga-lo, sem que o ouça tudo? Se e mistério encoberto, como vê-lo?...
Lamento
ANTERO DE QUENTAL
Um dilúvio de luz cai da montanha: Eis o dia! Eis o sol! O esposo amado! Onde há por toda a terra um só cuidado Que não dissipe a luz que o mundo banha?
Flor a custo medrada em erma penha. Revolto mar ou golfo congelado, Aonde há ser de Deus tão olvidado Para quem paz e alívio o céu não tenha?
Deus é Pai! Pai de toda a criatura: E a todo o ser o seu amor assiste: De seus filhos o mal sempre lembrado....
Ah! Se deus a seus filhos dá ventura Nesta hora santa... e eu só posso ser triste... Serei filho, mas filho abandonado!
O Convertido
Entre os filhos dum século maldito Tomei também lugar na ímpia mesa, Onde, sob o folgar, geme a tristeza Duma nsia impotente de infinito.
Como os outros, cuspi no altar avito Um rir feito de fel e de impureza... Mas um dia abalou-se-me a firmeza, Deu-me um rebate o coração contrito!
Erma, cheia de tédio e de quebranto, Rompendo os diques ao represo pranto, Virou-se para Deus minha alma triste!
Amortalhei na Fé o pensamento, E achei a paz na inércia e esquecimento... Só me falta saber se Deus existe!
Antero de Quental
A Germano Meireles
Só males são reais, só dor existe: Prazeres só os gera a fantasia; Em nada[, um] imaginar, o bem consiste, Anda o mal em cada hora e instante e dia.
Se buscamos o que é, o que devia Por natureza ser não nos assiste; Se fiamos num bem, que a mente cria, Que outro remédio há [aí] senão ser triste?
Oh! Quem tanto pudera que passasse A vida em sonhos só. E nada vira... Mas, no que se não vê, labor perdido!
Quem fora tão ditoso que olvidasse... Mas nem seu mal com ele então dormira, Que sempre o mal pior é ter nascido!
Antero de Quental
Consulta
Chamei em volta do meu frio leito As memórias melhores de outra idade, Formas vagas, que às noites, com piedade, Se inclinam, a espreitar, sobre o meu peito...
E disse-lhes: No mundo imenso e estreito Valia a pena, acaso, em ansiedade Ter nascido? Dizei-mo com verdade, Pobres memórias que eu ao seio estreito.
Mas elas perturbaram-se - coitadas! E empalideceram, contristadas, Ainda a mais feliz, a mais serena...
E cada uma delas, lentamente, Com um sorriso mórbido, pungente, Me respondeu: - Não, não valia a pena!
Antero de Quental
O Palácio da Ventura
Sonho que sou um cavaleiro andante. Por desertos, por sóis, por noite escura, Paladino do amor, busco anelante O palácio encantado da Ventura!
Mas já desmaio, exausto e vacilante, Quebrada a espada já, rota a armadura... E eis que súbito o avisto, fulgurante Na sua pompa e aérea formosura!
Com grandes golpes bato à porta e brado: Eu sou o Vagabundo, o Deserdado... Abri-vos, portas de ouro, ante meus ais!
Abrem-se as portas douro com fragor... Mas dentro encontro só, cheio de dor, Silêncio e escuridão - e nada mais!
Antero de Quental
Lacrima
Noite, irmã da Razão e irmã da Morte, Quantas vezes tenho eu interrogado Teu verbo, teu oráculo sagrado, Confidente e intérprete da Sorte!
Aonde são teus sóis, como coorte De almas inquietas, que conduz o Fado? E o homem porque vaga desolado E em vão busca a certeza que o conforte?
Mas, na pompa de imenso funeral, Muda, a noite, sinistra e triunfal, Passa volvendo as horas vagarosas...
É tudo, em torno a mim, dúvida e luto; E, perdido num sonho imenso, escuto O suspiro das coisas tenebrosas...
Antero de Quental
Nocturo
Antero de Quental
Espírito que passas, quando o vento Adormece no mar e surge a Lua, Filho esquivo da noite que flutua, Tu só entendes bem o meu tormento...
Como um canto longínquo – triste e lento – Que voga e subtilmente se insinua, Sobre o meu coração, que tumultua, Tu vertes pouco a pouco o esquecimento...
A ti confio o sonho em que me leva Um instinto de luz, rompendo a treva, Buscando, entre visões, o eterno Bem.
E tu entendes o meu mal sem nome, A febre de Ideal, que me consome, Tu só, Génio da Noite, e mais ninguém!
APARIçãO
Antero de Quental
Um dia, meu amor, (e talvez cedo,
Que já sinto estalar-me o coração!)
Recordarás com dor e compaixão
as ternas juras que te fiz a medo.
Então, da casta alcova no segredo,
da lamparina ao trêmulo clarão,
ante ti surgirei, espectro vão,
larva fugida ao sepulcral degredo...
E tu, meu anjo, ao ver-me, entre gemidos
e aflitos ais, estenderás os braços
tentando segurar-te aos meus vestidos...
- "Ouve! espera!" - Mas eu, sem te escutar,
fugirei, como um sonho, aos teus abraços
e como fumo sumir-me-ei no ar!
PEPA
Antero de Quental
Dá-me pois olhos e lábios; Dá-me os seios, dá-me os braços; Dá-me a garganta de lírio; Dá-me beijos, dá-me abraços!
Empresta-me a voz ingênua Para eu com ela orar A oração de meus cantos De teu seio no altar!
Empresta-me os pés, gazela, Para que eu possa correr O vasto mundo que se abre Num teu rir, num teu dizer!
Empresta-me a tua inocência, Para eu ir ao céu voar... Mas acende cá teus olhos Para que eu possa voltar!
Por Deus to peço, senhora, Que tu mo queiras fazer; Dá-me os cílios de teus olhos Para eu adormecer;
Porque, enquanto os tens abertos, Sempre para aqui a olhar, Não posso fechar os meus, E sempre estou a acordar!
Pela Santa-Virgem peço Que tu me queiras sorrir; Porque eu tenho um lírio douro Há três anos por abrir,
E, se lhe deres um riso, Há-de cuidar que e a aurora... E talvez que o lírio se abra, Talvez que se abra nessa hora!
Por Alá, minha palmeira! Quando ao sol me for deitar, Faze sombra do meu lado... Por que eu quero-te abraçar!
Damor te requeiro, ondina, Quando te fores a erguer, Ver-te no espelho das fontes... Porque eu quero-te beber!
ACORDANDO
Antero de Quental
Em sonho, às vezes, se o sonhar quebranta
este meu vão sofrer, esta agonia,
como sobe cantando a cotovia,
para o Céu a minha alma sobe e canta.
Canta a luz, a alvorada, a estrela santa,
que ao Mundo traz piedosa mais um dia..
Canta o enlevo das coisas, a alegria
que as penetra de amor e as alevanta...
Mas, de repente, um vento úmido e frio
sopra sobre o meu sonho: um calafrio
me acorda. - A noite é negra e muda: a dor
cá vela, como dantes, ao meu lado...
Os meus cantos de luz, anjo adorado,
são sonho só, e sonho o meu amor!
DESESPERANçA
Antero de Quental
Vai-te na asa negra da desgraça,
pensamento de amor, sombra duma hora,
que abracei com delírio, vai-te embora,
como nuvem que o vento impele... e passa
Que arrojemos de nós quem mais se abraça,
com mais nsia, à nossa alma! e quem devora
cessa alma o sangue, com que mais vigora,
como amigo comungue à mesma taça!
Que seja sonho apenas a esperança,
enquanto a dor eternamente assiste,
e só engane nunca a desventura!
Se em silêncio sofrer fora vingança!.
Envolve-te em ti mesma, ó alma triste,
talvez sem esperança haja ventura!
A um Poeta Antero de Quental
Tu que dormes, espírito sereno, Posto à sombra dos cedros seculares, Como um levita à sombra dos altares, Longe da luta e do fragor terreno.
Acorda! É tempo! O sol, já alto e pleno Afugentou as larvas tumulares... Para surgir do seio desses mares Um mundo novo espera só um aceno...
Escuta! É a grande voz das multidões! São teus irmãos, que se erguem! São canções... Mas de guerra... e são vozes de rebate!
Ergue-te, pois, soldado do Futuro, E dos raios de luz do sonho puro, Sonhador, faze espada de combate!
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